Torturaram “pés de chinelo” e eu não me importei

RobotizaçãoChegando à velhice, devo render graças a Deus por uma vida plena de venturas e de aventuras. Por tudo o que vi, ouvi, vivi, o de que participei. Especialmente, porém, rendo graças por – nesse já meu Inverno – estar-me mantida, integralmente, a capacidade de espantar-me, de deslumbrar-me, de assustar-me, de ter esperanças, de amar, de solidariedade. E, de maneira fundamental, a capacidade de indignar-me. Pois, mesmo na velhice, continuo acreditando no ser humano, apesar de sua complexidade.

Espantei-me, assustei-me, deslumbrei-me e, também, fui tomado de indignação com a reação de leitores quanto aos textos republicados da tortura em Piracicaba nos anos mais espinhosos da ditadura civil-militar. Entusiasmei-me diante da reação indignada de muitos, incluindo aqueles que nem sequer, à época, tinham nascido. No entanto, assustei-me, espantei-me com o desprezo, indiferença e intelectualismos de outros. Confirmava-se, diante de mim, a observação aguda e sábia do Papa Francisco quanto a estarmos vivendo os perigos de uma “era da indiferença.”

Para alguns, não havia grande significado em Lazinho e seus asseclas terem torturado os que chamaram de “pés-de-chinelo”, pessoas anônimas, drogados, prostitutas, esse último estágio de uma sociedade absolutamente injusta e cruel. Não se viam seres humanos, com dignidade humana – mas rebotalhos da sociedade, como que lixos desprezíveis. Mas eram gente, pessoas humanas, desprotegidas, frágeis, indefesas, à mercê dos desejos, das bestialidades e crueldades daqueles que – eles, sim! – tinham perdido os últimos traços de humanidade. Desde aquele tempo, portanto, já havia pessoas que podiam ser consideradas “descartáveis”.

Outros, mais refinados intelectualmente – mas sem sensibilidade solidária, contentes com sua agudeza apenas intelectual – insistiram em não ver, naquelas violências, a “tortura política”. Pois marginais, prostitutas, viciados teriam sido, apenas, uma questão social. Não se perguntaram em como pode haver o social sem o político. Ora, a tortura, por si própria, é um mal. E o mal não é apenas uma questão filosófica, ontológica. Hanna Arendt – sugiro a leiam ou, urgentemente, releiam – refletindo a respeito do mal, das torturas, do genocídio de judeus, negros, homossexuais, deficientes físicos entendeu claramente essa “banalização do mal”.

 E nos deixou a conclusão definitiva, lição de grandeza humana: “ O mal é político e histórico: é produzido por homens e se manifesta apenas onde encontra espaço institucional para isso – em razão de uma escolha política.” A banalização da violência, portanto,  corresponde, para Arendt, ao vazio de pensamento, onde a banalidade do mal se instala. Isso aconteceu na ditadura brasileira. Em todos os níveis da sociedade.

As torturas dos pequeninos e indefesos, em Piracicaba, foram tão – ou até mais – revoltantes do que das que vitimaram Herzog. Eles não tinham proteção alguma, nem qualquer rede de apoio. E, acima de tudo, eram – também, como Herzog –  pessoas humanas, apesar da infelicidade de suas vidas.

Com tristeza, mas com esperança, concluo com Bertold Brecht:
“Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro

Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário

Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável

Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei

Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.”

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