Culpas e o sentimento do mundo

Espanta-me o número de pessoas que dizem não ter culpas, não as sentindo nunca. Não as tendo e nem nunca as sentindo, dizem elas, não têm desculpas a pedir. Nem perdão. Então, assusto-me, temo por elas e por nós todos. Pois pessoas sem culpas deixam de viver sua própria humanidade, fecham-se, apartam-se da vida como um todo. Pessoas que dizem não ter culpas são as que, de alguma forma, vêem a vida de maneira amoral. Pior ainda: não enxergam o outro. E, sem o outro, alguém passa a ser nada.

Chega a ser aterradora a capacidade humana de, ao mesmo tempo, ser e não ser. De repente, lampejos do divino e do sagrado; logo depois, a revelação do demoníaco e do profano. Basta lembrar o auge da “guerra fria”, quando os governos contratavam soldados mercenários. Buscavam-se os mais cruéis. E os mais eficientes matadores humanos estavam no Nepal, onde eram preparados cientificamente para ter corações de aço. Começavam matando formigas. Depois, baratas. Em seguida e gradativamente, exterminavam ratos, gatos, cachorros, bezerros, bois e, por fim, pessoas. O mais difícil, segundo depoimento de alguns deles, era matar o primeiro humano. Mas só o primeiro. Depois, acostumados, não viam diferença entre matar um homem e uma barata. Não tinham culpas. Não sentiam culpas.

Em nossos tempos, estamos sendo treinados para ver massacres de pessoas e não reagir. Acostumados ao horror. Ora, sou um homem de muitas, de intensas culpas. Em cada dia, sinto algumas, acho que todas. Sei pedir perdão mas nem sempre eu me perdôo a mim mesmo. Quanto mais se me abrem os olhos e se me refina a consciência, mais se escancaram os sinais do mundo e sinais dos tempos. Então, mais culpado me sinto. E rendo graças por isso, com medo de não sentir culpas. Pois tinha plena e lúcida, assustadora e amarga consciência disso quando do atentado às torres gêmeas de Nova York.

Ainda me lembro. Quando me alertaram para a tragédia, liguei a televisão, vi, não entendi, não me horrorizei. Pensei fosse um filme, mais uma superprodução de violência, em cores. Apenas um filme. E não era. Lá estava o horror que não me horrorizara. Não diferenciei a fantasia do real, a realidade da ficção. Pessoas morriam e eu pensava fossem efeitos especiais de tevê. De repente, senti culpa: eu me habituara ao cotidiano de mortes de tevê, sem sangue, sem cheiro, sem gemidos – mas coloridos e com música ao fundo. Vi-me como um soldado do Nepal ao contrário: em vez de treinado para matar, treinaram-me para ser insensível à morte criminosa.

Há, porém, sinais alvissareiros de decência e de dignidade na raça humana. Não nos chegam de salas de televisão, nem das Bolsas de Valores. Ecoam das ruas do mundo, de multidões indignadas que, sabendo-se da raça humana, sentem-se culpadas. Eis aí, revelada, nessas multidões, a verdadeira globalização: a alma da humanidade. Dela, Drummond nos falava ao revelar como fazer: “eu tenho duas mãos e o sentimento do mundo”. Não precisa mais. O que se faz contra um faz-se contra todos.

Poucos sentiram culpa quando Hitler podia ser contido. Hitler foi Bush, ontem. Bush foi Hitler depois. Todas as mentiras se escancararam. O mal se espalha a partir de uma trindade demoníaca e assassina, em nome da qual se bebe sangue humano: dinheiro, política e armas. Sentir culpa – nem que seja a culpa de não ter culpa – já é um início para exorcizar demônios. Depois, bastam as duas mãos, um “mea culpa”. E o sentimento do mundo. Bom dia.

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