Um primeiro dia da criação

Numa já longínqua celebração de fim de ano, participei de uma uma festança russa. Comida, bebida, trajes, danças folclóricas, cantorias, ao som misterioso de balalaicas. Dizia-se, antigamente, a alma humana ser russa, na poesia e nos sentimentos. Não sei. Mas, naquele reveillon, compreendi a força da cultura no cotidiano das pessoas. Pois a comemoração à russa, à eslava, me revelou-me a importância do dessaber. E a desimportância de saber. Para quê entender a vida, se basta vivê-la? Naquele reveillon russo, nada precisei entender e gostei. Lá, fisicamente, eu me parecia intruso, mas a minha era alma universal. Senti-me em casa.

Há uma tradição árabe que convida, ao primeiro minuto do novo ano, a saborear doze bagos de uva. É o fruto da videira, a árvore da vida do paraíso, a fonte do vinho, na embriaguez e no martírio que tanto aproximam, simbolicamente, Cristo e Dioniso. A paixão dionisíaca é regada pelo vinho, na embriaguez divina, no culto da fertilidade e da imortalidade. E a paixão de Cristo é a de seu sangue derramado, o vinho tornado sangue, o sangue tornado vinho, cálice da ressurreição, que se bebe e se toma em sua memória. Nesse ritual árabe, doze bagos de uva são expectativas de bênçãos e de ressurreições em cada um dos doze meses do ano e em todos eles.

Ora, para não me aparlemar ainda mais, tento, já há alguns anos, criar teorias, inventar explicações, uma arte de sobreviver. Nós é que estragamos as coisas. E as pessoas. Até no amor, somos capazes de estragar tudo. E, sem precisar entender muito, a simplicidade é comovedora: amor é criação. E, sendo criação, as pessoas precisam também inventar e criar o ser amado. E irem-se inventando a si mesmas, inventando e reinventando. Pois inventar é, especialmente, brincar. Ao se brincar de fazer, faz-se. E o brinquedo assume vida própria e se torna real, como o Pinóquio de Gepetto. Ou como aconteceu com Deus, que também brincou ao inventar o paraíso, o mundo, o universo, o homem, brinquedos para o seu agrado. Deus deleitou-se com sua invenção, desejando-a perfeita. Fez, moldou, desenhou, projetou, arquitetou. Deliciou-se ao ver que tudo era bom e bonito. Só não entendo de onde apareceu a serpente.

Até o último minuto de 2008, lá me vi inventando coisas, inventando pessoas, até mesmo a mulher amada. Pois é do que mais me convenço: a invenção do outro a partir da invenção de si mesmo. Ora, se eu me invento Quixote, terei que inventar Dulcinéia; se me invento Romeu, terei que inventar Julieta. E, também, o contrário: se invento Isolda, terei que inventar-me como Tristão; se invento Maria, terei que ser José; se invento Eva, hei que me inventar como Adão. Se não houver invenção, homem e mulher não terão originalidade alguma, peças saídas da mesma linha de produção…

No reveillon, tentei reinventar a tradição árabe das uvas. E propus que, em vez de doze bagos de uva numa taça de champanha, mudássemos a tradição, aproximando-a ainda mais de Dioniso: cada uva numa taça de champanha, doze taças, doze uvas, uma videira, todo o vinho, a festa de Dioniso, a paixão de Cristo, morte e ressurreição, um ano que se crucificou, outro que nasceu de almas virgens, pois são virgens as almas, quando nascem e quando renascem.

E fui inventando, a cada taça de champanha, a cada uva mastigada. Quando percebi, lá tinha, eu, construído o primeiro dia da criação, o meu paraíso pessoal. Era o meu dessaber, o meu não saber, minha não-ciência, a infância dos tempos. Tudo foi tão simples que nem a serpente apareceu. Inventemos, pois, 2009. Bom dia.

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