Um só Chico

Chico, há milhões deles no Brasil. No entanto, apenas dois não precisam de carteira de identidade. Nem de endereço. Um é o “Velho Chico”, cujas águas cortam o país, o rio da unidade, mais amado do que o Amazonas, belo e sagrado, ainda que não tão belo e nem tão sagrado quanto o rio Piracicaba, mas essa é outra história. E o outro Chico, de olhos azuis, imortal em cada verso, em cada canção.

Esse Chico – que, além de tudo, é Buarque e é de Hollanda – dizem que começou a sua grande história com um rasqueado de violão: “Tem mais samba”, o nome da música, naquele trágico 1964. Mas quase ninguém percebeu. Para mim, Chico nasce em 1965 quando, num programa de tevê – quase que para calouros – cantou “Pedro Pedreiro”. Amor, meu amor, não nasce apenas à primeira vista. Nasce, também, à primeira oitiva. Comigo aconteceu. Ouvi “Pedro Pedreiro”, fui seduzido, tornando-me cativo desse Chico genial à medida que, naquele 1965, ele, grávido das musas, gestou e gerou “A Rita”, “Olê, olá”, “Meu refrão” – paro por aqui, antes de a saudade torturar.

Para brigar comigo, ficar de mal, é fácil: basta não gostar do Chico. Tornou-se questão de fé. Do “Velho Chico”, discuta-se tudo, até que não reajo, pois minhas águas amorosas correm acho que nos limites do Itapeva, águas tão nossas. Mas não se fale do outro, de quem tenho inveja e a quem meu coração deve tantas pulsações. Pois não houve alegrias de amor sem Chico estar presente. E, também, não houve dores do coração que ele não compartilhasse. Um novo amor? Lá está Chico. O que se desfez? Lá está Chico. O amor sobreviveu? Lá está Chico. Até num amor chileno.

Ora, dirão – homens e mulheres de pouquíssima fé – que Chico pouco tem a ver com um amor chileno. Mas pode ter tudo. Um amor pode nascer em pleno vôo de São Paulo a Santiago. Um moço brasileiro, numa poltrona, lê poemas de Neruda; na poltrona ao lado, a moça chilena lê composições de Chico Buarque. Fingindo-se distraída, ela pergunta se o rapaz conhece “20 poemas de amor y una canción desesperada”, de Pablo. Ele responde: “Innumerable corazón del viento latiendo sobre nuestro silencio enamorado.” Ele lhe pergunta se ela conhece “Tatuagem”, daqueles amargos anos. E ela responde: “Quero ficar no teu corpo feito tatuagem que é pra te dar coragem pra seguir viagem…” Quem resiste a Chico e Neruda?

Onde houver um coração humano com capacidade de palpitar, Chico invade- o . E confesso espantar-me, ainda hoje – espanto diante do que não entendo – com a riqueza de uma época que conseguiu unir talentos como João Gilberto, Vinicius, Tom Jobim, Chico, Toquinho, Ruy Guerra, Francis Hime, Edu Lobo – ficando-se, apenas, no âmbito da croniqueta e de uma constelação.

Mas ando triste. E procuro aquele “anjo safado, o chato dum querubim”, de que ele falou numa de suas canções. Para lhe pedir traga o Chico de volta. Pois alguém precisa convencê-lo a retomar o violão, seus poemas, na intimidade da dor e da alma. Que são a nossa dor e a nossa alma. Pois o Chico romancista não dá certo, perda de tempo e de talento. E, muito menos, o Chico que se isola na França, dando conselhos políticos e fazendo análises ideológicas. Chico não tem que prosear. Sua arte é poetar.

Neste finzinho de ano, para muita gente ainda não passou o pranto: “oh, pedaço de mim, oh, metade afastada de mim…” E sem Chico por aqui fica pior: “a saudade é o pior castigo/ e eu não quero levar comigo/ a mortalha do amor/adeus.” Bom dia.

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