“In Extremis” (146) – Sem Thiago, “faz escuro” (mas eu não canto)

Thiago-Mello

O poeta amazonense Thiago de Mello morreu aos 95 anos, no dia 14 de janeiro passado. (foto: memoriasdaditadura.org.br)

Ora, não se diga que Thiago de Mello morreu. Apenas seu corpo foi sepultado. Poetas não morrem. Por isso, enquanto houver alguém amando – seja apenas uma pessoa – enquanto o colibri estiver beijando a flor; enquanto mãos se encontrarem em nome da paz – haverá, também, um poeta celebrando a Vida. E Thiago de Mello estará presente, entoando o seu canto especial, “Estatutos do Homem”. E advertindo-nos: “Só uma coisa fica proibido: amar sem amor.”

Confesso não ter conseguido, ainda, avaliar o tanto que o inesperado nos modula a vida. O acaso, o fortuito, o imprevisível seriam, eles, determinantes na nossa existência? Deslumbrei-me com a poética de Thiago de Mello ao descobrir seu magistral poema, reação imediata ao golpe militar de 1964. Thiago estava no Chile, como adido cultural, amigo de Pablo Neruda, do presidente Allende. Foi torturado sob a ditadura de Pinochet. Certamente por inspiração divina – companheiro do mistério que ele sempre foi – o poema nasceu-lhe de sopetão: “Fica decretado que, agora, vale a verdade, que, agora, vale a vida…” E, então, fez-se história.

Foi em maio de 1993 que a “Fada Fortuna” me privilegiou. Eu escrevia, também, para o Correio Popular de Campinas. Eram crônicas e entrevistas semanais. O nosso editor era o genial Wilson Marini. E foi dele a sugestão: “Por que não conseguir entrevistar o Thiago de Mello?” Mas como, quando, onde? Em que nuvem deveria estar o poeta para ser alcançado? Pois ele estava ali pertinho de Campinas, em Itatiba. E Thiago aceitou ser entrevistado por um desconhecido jornalista piracicabano.

Era uma casa pequenina, humilde. Quem me recebeu foi Aparecida, a jovem companheira do poeta imortal. Sorrindo, encaminhou-me até uma edícula onde Thiago se recolhia. No silêncio, na quase penumbra, apenas acordes de Mozart pareciam existir, vindos de um pequenino aparelho de som. E foi quando senti o impacto, o golpe, a visão inesquecível: Thiago de Mello, todo vestido de branco, brancas até mesmo as sandálias, o rosto cor de cobre emoldurado pela vasta cabeleira prateada! Não me vi diante de um poeta, do escritor de renome internacional: estava, eu, diante de um profeta. E senti ter entrado no aconchegante mosteiro de um sacerdote pagão. Entendi, de imediato, o trecho do poema: “Fica permitido a qualquer pessoa, a qualquer hora da vida, o uso do traje branco…”

Não, não conseguirei narrar o que aconteceu. Quero fazê-lo – até mesmo para agradecer aquele privilégio imensurável – mas não há como descrever a aurora, a paz, a harmonia da beleza humana. Thiago de Mello foi um dos mais belos seres humanos com que cruzei nessa minha tão longa jornada. Conheci, estive com e até mesmo entrevistei personalidades exuberantes. Digo de alguns: Juscelino, Jânio, Geisel, Montoro, Carlos Lacerda, Carvalho Pinto, Luiz Carlos Prestes, Jorge Amado, Hilda Hilst, cardeais Motta, Evaristo Arns, Agnello Rossi, Hélder Câmara, Tônia Carreiro, Procópio e Bibi Ferreira, tantos e tantos. Foi, porém, em Thiago de Mello, o poeta, em quem vi, senti, descobri a exuberante simplicidade e riqueza do ser humano.

Foram cinco tardes que, ainda agora, estão entre as mais belas de minha vida. Thiago de Mello tirou-me qualquer dúvida e passei a entender: há, realmente, o divino no humano. Daquele primeiro encontro, saí atordoado por tanta beleza, ternura e humanidade. E querendo viver o que ele proclamara: “Só uma coisa fica proibida: amar sem amor.” Thiago de Mello cantou o amor. Agora, sem ele, faz escuro. E eu não consigo cantar.

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