“In Extremis” (183) – “Vanitas vanitatum”

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“A vida em sociedade exige máscaras. No recolhimento do lar, porém, elas caem.” (imagem: Tamara Gak / Unsplash)

Como jornalista, sinto-me incapacitado de fazer qualquer comentário a respeito das últimas eleições. Nem sei o que dizer também como cidadão. Na realidade, acontece-me – não sei se ocorre, também, com outros octogenários – que quase mais nada entendo. Até mesmo alguns provérbios, reflexões da sabedoria popular já me trazem dúvidas. Por exemplo: será mesmo verdade que “Vox Populi, Vox Dei” – que o povo fala a vontade de Deus? Se assim fosse, Deus haveria de pretender se elegesse deputado aquele desastroso Pazuelo?

Recuso-me – por incapacidade – a comentar eleições. Inquieto-me, porém, com outras questões. Ora, transformações causadas pela pandemia obrigaram-nos a um recolhimento com o qual nem todos souberam conviver. Entendeu-se que a complicada e desafiadora arte da convivência é mais desafiadora do que muitos acreditavam. Aconteceu, mais do que antes, a descoberta da solidão em família. E, também, do tanto que o silêncio pode ser atemorizador.

A vida em sociedade exige máscaras. No recolhimento do lar, porém, elas caem. Não há mais falsos elogios, farsas interesseiras. A crueza da verdade de cada um revela-se por inteiro. E a pessoa vê-se a si mesma em sua própria realidade e não mais no circo social onde foi mais intérprete do que autora. Quem sou eu? Que faço de minha vida?

Apesar de dúvidas intensas, viver muito tempo ensina algumas coisas, mesmo que pequeninas. Para este escrevinhador, uma delas foi despertar para os livros sagrados, reveladores de profunda sabedoria. Mais do que religiosos, são orientações de vida para aqui mesmo, o mundo onde já está o “reino de Deus”. E o Eclesiastes asperge sabedoria. “Vanitas vanitatum et omnia vanitas” – vaidade das vaidades, tudo é vaidade. Que se não confunda com a alegria de coisas fecundas realizadas. Mas, sim, envaidecer-se diante da vacuidade, do ilusório, do vão.

A pandemia parece ter enlouquecido pessoas que, talvez, se tenham atormentado nas sombras do recolhimento. Em Piracicaba, tornou-se como que uma tola disputa de vaidades a publicação de autoelogios, de declarações de amor a si próprios, de perda de pudor diante de carências afetivas ou de ressentimentos. Faltou-nos a criança da fábula para dizer que o rei está nu.

Diante de tão tolas vaidades, está o amargor da cruel realidade feita de fome, de desemprego, de multidões “morando nas ruas”. E de crianças e adolescentes sem perspectivas, de uma juventude para a qual se nega um futuro mais promissor. As vaidades mascaram até mentiras oficiais que anunciam maravilhas quando o horror as desmente. Anunciam-se um desenvolvimento econômico, o surgimento de novos empregos. Mas a que empregos está habilitada a multidão de jovens sem o mínimo acesso à mais sofisticada tecnologia? Como sobreviverão os milhões desempregados à margem da revolução digital?

Minha geração viveu notáveis transformações desde a II Grande Guerra. Do carroção de boi, fomos às estrelas. Do lápis e caderno, à internet. Dos anos dourados, aos de chumbo. E estamos vendo, agora, a dramática mudança, essa de o ser humano ameaçado de se transformar em robô. Re-humanizar o humano, eis o grande desafio destes tempos em que, no Brasil, eleições decisivas – como as de domingo – não apresentaram propostas, projetos para enfrentar problemas e dificuldades que infelicitam a população.

Ler e ouvir futilidades em meios de comunicação machuca a alma. A vaidade enlouquece. E a loucura é contagiosa. E, entre loucos, os ódios recrudescem. O Brasil está enlouquecendo. E Piracicaba também. Isso é amedrontador: o que nos espera?

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