“In Extremis” (208) – Ô, “seu” neuro-divergente!

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(imagem: Gerd Altmann / Pixabay)

          Com todas as suas maravilhas, o mundo está ficando, cada vez mais, um lugar irritante de se viver. O ser humano, apesar de tudo o que já nos foi ensinado, insiste, ainda, em atrapalhar a naturalidade das coisas. Cria dificuldades. Complica. Até os deliciosos xingamentos e xingações de nossa cultura estão sendo execrados. É como se quisessem destruir a riqueza da linguagem popular. A imperial tentativa de impor o malfadado “politicamente correto” pretende transformar as gentes em simples massa de manobra.

Sugiro, de meu cantinho quase solitário, refletirmos, por exemplo, em relação à antigamente adorável palavra “puta”. Especialmente em Piracicaba, “puta” nunca foi, apenas, uma corruptela de prostituta. Aqui, sempre representou sinal de grandeza, de excepcionalidade: puta chuva, puta muié bonita, puta hóme forte. E, também, muito usada para enviar alguém para aquela que o pariu. Agora, a corriqueira e adorável puta há que ser chamada de “profissional do sexo”. Portanto, que meu inimigo vá, ele, para a profissional do sexo que o trouxe ao mundo, que o pariu!

E os nossos corriqueiros e também adoráveis “lazarento”, “morfético”? Ora, são qualificações seculares, históricas. Piracicaba foi, no passado, pioneira em criar o “lazareto”, lugar especial para abrigar os que, hoje, vemos  como portadores de “hanseníase”, antigos morféticos, leprosos, lazarentos, os com a “a doença de Lázaro”. Imagine se irei, lá, eu, dirigir-me a algum político desavergonhado, xingando, por exemplo: “Ô, seu portador de hanseníase, você é um filho de uma profissional do sexo. Portanto, vá pra genitora que o trouxe ao mundo!” Teria algum sentido?

Há alguns estudos – que se julgam sérios – tentando reformular o vernáculo brasileiro. Conheci uma especialista nessa aventura. E ela me advertiu do perigo que correrei se, algum dia, vier a referir-me ao soldado que foi presidente como homem despreparado, tolo, burrão, ignorante. Poderei ser processado, de forma obrigado a provar o que foi dito ou escrito. Mas a doutora falou que poderei dizer tudo isso de outra forma, numa nova linguagem. Assim: o ex-soldado é um” neuro divergente”. É isso: toda xingação poderá, agora,  resumir-se a uma só expressão: “Ô, seu neuro divergente!”

E tem mais. Hesitei em continuar desfilando as doces xingações, pensando naquelas senhoras piedosas que iriam criticar-me. Mas estou em vesperazinha de completar 83 anos. E ando apoiado em bengala. Poderei, pois, em minha defesa, alegar esteja, o velhinho aqui, com doenças no cérebro, que falo besteira por ser neuro divergente. Algo assim.

Isso posto, arrisco-me a contar o que acho mais assustador ainda. Sabem, aquele formidável refrão tradicionalíssimo em campos de futebol? Aquele: “Seu juiz, vá tomá no ….”? Esse, também, está revisto e refinado. Deve-se gritar em coro: “Seu Juiz, vá tomá no seu orifício excretor de resíduos intestinais.”

Tento imaginar o que ocorre entre a criançada, em suas brincadeiras de rua, mas me detenho. Pois crianças não mais brincam, nem se xingam, prisioneiras, pobrezinhas, de seus celulares. Logo – tão contrário de antigamente – a molecada não vai mais gritar, uns para os outros, como antigamente: “ô, turquinho comedor de criança; ô, italianinho porco; ô alemão-batata-come-queijo-com-barata; ô, judeuzinho assassino que matou Jesus.

Quase antevejo. A criançada irá acessar a tal inteligência artificial e essa ladra do trabalho alheio irá copiar tudo o que temos dito e feito nos últimos séculos. E voltará a mandar juiz de futebol a tomar naquele lugar… Apenas isso.

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