“In Extremis” (213) – Barulheira alentadora

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(imagem: Clker-Free-Vector-Images / Pixabay)

Que se não surpreenda o eventual leitor com o que lhe parecer contradição deste rabiscador de letras, garimpeiro de palavras. Pois, realmente, é contradição e, até mesmo, paradoxo. Ora, se lá se foi ele recolher-se a um cantinho onde viva a tão almejada solitude, como compreender venha, ele e agora, a alegrar-se por e com barulhos, cantorias, gritos, berreiros? Vá-se lá entender, não? Mas foi o que aconteceu: ele próprio se alegrou, encantando-se com o que ouvia quando compreendeu o magnífico significado de tudo aquilo.

Muito próximo àqueles diversos condomínios, construíra-se, há algum tempo, uma igreja, semente de nova paróquia. O escrevinhador não a conhece, nunca a frequentou. Mas ouve. E irritava-se, frequentemente, com os sons, as músicas, as recitações. Por que tal barulheira toda, essa invasão na quietude da região?

Logo pela manhã – e durante toda uma semana – cantorias, gritos de jovens e de crianças. À tarde, acontecia como que uma bagunça estranhamente acompanhada de orações. E à noite, mais cantoria, mais sermões, mais missa! Acabei por entender: eram padres missionários, outra missão apostólica. Mas, lá pelo terceiro dia, comecei a ficar mais atento, penso que mais interessado no que estava acontecendo tão próximo de meu cantinho. Era, realmente, missão religiosa. Que culminou com uma procissão impressionante por muitas ruas do bairro, multidão acompanhando.

Aconteceu, daí, o que o povo já conhece: “língua fala, língua paga”. Eis que, a pouco e pouco, pensamentos, lembranças, ideias começaram a amainar a irritação do queixoso. E, por absurdo pareça, veio a saudade. Os pensamentos tiraram-me do tempo de ancião e levaram-me à infância. E lá estava eu de volta a 1946. Com o fim da Guerra, buscavam-se os novos dias de paz. O povo se espremia na então Praça da Matriz, atual Catedral de Santo Antônio. Uns queriam gritar mais do que outros. Padres “puxavam” orações, mulheres de terços nas mãos, pessoas chorando de alegria. Piracicaba tornara-se Diocese e o primeiro bispo, Dom Ernesto de Paula, convocara as Missões, um dos seus primeiros trabalhos.

Não sei se corei de vergonha. Mas tive-a, sim. Pois receei ter-me tornado, naqueles dias, um desses velhinhos impertinentes que chegam a não se suportar a si mesmos. O que acontecia tão perto de nós era, na verdade, um encontro de alegrias, de perspectivas, movimento que transudava esperança. Aquelas crianças, adolescentes, jovens estavam sendo apresentados a uma outra dimensão da vida. Outra e fundamental: a da espiritualidade, da revelação de ser possível a vida fraterna.

Confesso estar evitando a palavra amor, tão banalizada tem sido. Vulgarizam-na a ponto de se falar até mesmo em “amor às armas”, “amor às guerras”. Mas aqueles dias tinham-se tornado dias de amor aos que daquela obra participavam. De caridade. E, então, lembranças trouxeram-me aqueles anos passados em que se criara uma verdadeira consciência da solidariedade. Havia e vivia-se aquilo que o Papa Francisco tem evocado, ao longo do seu pontificado, como “amor social” que envolve também – ou especialmente – a política.

Fui, então, despertado da tola irritação. Aquela barulheira toda – gritos de alegria, cânticos, orações – era, na realidade, alentadora. Por que não acreditar, novamente, que as mudanças verdadeiras começam de baixo para cima? Não serão crianças e jovens que – despertados – trarão de volta o “amor social” à política, à economia, ao cotidiano de todos nós? Preciso acreditar no que entendiam meus ancestrais árabes: “maktub”. Está escrito.

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2 comentários

  1. LUÍS ANTONIO RÉ em 28/07/2023 às 06:21

    REALMENTE ALENTADORA QUANDO TEM-SE A OPORTUNIDADE DE UM ARTIGO DESTE PORTE…OBRIGADO!

    • Patrícia Elias em 28/07/2023 às 14:52

      Nós também lhe agradecemos por acompanhar os artigos.
      um abraço

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