Atentado moral na Santa Rita.

Para quem tem olhos de ver e ouvidos de ouvir – e um mínimo de vontade de entender – nada tem de estranho esse estranho silêncio de políticos e de veículos de comunicação diante da informação absurda, ilegítima e antidemocrática divulgada com constrangimento: a autorização para cercar com muros um dos mais belos cenários naturais de Piracicaba, o lago de Santa Rita, no bairro com esse mesmo nome.

Esse desatino contra a ordem democrática e em prejuízo da população mais pobre e desassistida tem pretensão criminosa de longa data: desde a criação do loteamento Santa Rita, terras já de propriedade do falecido Adolpho da Silva Gordo, empreendimento capitaneado por Geraldo Quartim Barbosa, projeto do então ainda jovem arquiteto João Chaddad. Tratava-se do mesmo grupo que criou a Nova Piracicaba. Mas havia, em relação a esta, um elemento precioso, novo e enriquecedor: a paisagem natural das terras da Santa Rita, seu lago espetacular, com margens apropriadas para áreas de lazer e de entretenimento notáveis, um local turístico de grande valia. E essa a dificuldade dos promotores da Santa Rita: um empreeendimento imobiliário de alto nível não poderia ser, ao mesmo tempo, de atração turística e muito menos um espaço de lazer popular e de domínio público.

João Chaddad, hoje um expoente do tucanato de penugem mais diversificada, sabe e fez parte da luta para transformar aquele local em condomínio particular, uma impossibilidade pelo fato de o lago e suas adjacências serem de domínio público, propriedade da população. Por muitos e muitos anos, por algumas décadas, o sonhado empreendimento de um “bairro para ricos e poderosos” esbarrou na ordem democrática, que conseguje, pelo menos teoricamente, definir o privado e o público, o particular e o comum. Morar na Santa Rita passou a não ser um negócio tão interessante aos poderosos, pois a segurança se tornou precária e – o mais grave, para os que não gostam de cheiro do povo – de acesso livre à população que, com o tempo, passou a realizar piqueniques, passeios no local, pescarias, esportes náuticos, sem legislação que os impedisse e também sem qualquer fiscalização. A Santa Rita, por muito tempo, foi local escolhido por grupos marginais, abrigado até mesmo uma discutível seita de um também discutível atendimento a drogados. Isso espantou e afastou proprietários do primeiro momento. E trouxe prejuízos e desvalorizações.

Ora, conheço essa história como a palma de minha mão. Mais ainda: conheço-a até mesmo por hereditariedade. Pois morei na Santa Rita por muitos e muitos anos, quando os poderosos já tinham desistido de “privatizar” o espaço público. Era um lugar de liberdade, de convivência e de coexistência democráticas. E sei, também, do passado e da história daquelas terras, pois eram terras de meu avô e, na casa colonial à beira do lago, foi onde nasceu minha mãe. Ao longo, pois, dessa caminçhada, nunca vi ou ouvi ninguém de minha família atrevendo-se a pleitear que o povo fosse impedido de ter acesso ao lago e às belezas do local. Até anos recentes, havia pudores cívicos e uma consciência moral mais sólida. João Chaddad deve lembrar-se disso, pelo menos lembrar-se.

Nos últimos anos, houve, na Santa Rita, como que uma nova e poderosa ocupação de moradores de nível econômico mais refrinado: funcionários e executivos a Caterpillar, cujas terras, aliás, haviam pertencido a Silva Gordo; poderosos e atuantes membros e simpatizantes do PSDB de Piracicaba. E essa “bourgeoise” encastelada, obviamente, precisou conviver com a população sofrida, humilde e laboriosa de bairros vizinhos: Perdizes, São Francisco, Taquaral, outros. E com uma gente humilde que, em fins de semana, divertia-se no seu quase único e acessível lazer popular: o lago da Santa Rita, as margens da notável e bela lagoa.

 

Murar o lago da Santa Rita é um atentado moral ao povo de Piracicaba, à gente mais humilde e desassistida até mesmo de vereadores que buscam votos nessa periferia sofrida. Somente agora, com a vocação sanguessuga do tucanato tirânico em Piracicaba, foi possível esse atentado que vem sendo intentado há pelo menos cerca de três décadas. Se acontecer esse muro da exclusão, o prefeito poderá orgulhar-se de mais essa obra concluída, outro menosprezo ao povo, outro presente a poderosos. E João Chaddad poderá visitar seus amigos na paz de, enfim, ter conseguido agradá-los.

Cadê o Ministério Público? E a voz de doutores ambientalistas, combativos quando diante de holofotes? A privatização do Lago de Santa Rita não merece sequer uma missa, se Paris valeu apenas e tudo isso?

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