Reflexões no meu outono (IV)
Pode-se não acreditar em bruxas. Mas que elas existem, lá isso existem. Piracicaba sempre foi uma terra feita de lendas, de causos, de contos, com seus fantasmas e espíritos em que o povo acreditou. Ora, quando o povo acredita, as coisas acontecem. Ou existem. E não adianta racionalizar a respeito disso. Já dizia Shakespeare: “Há mais coisas, entre o céu e a terra, do que supõe a nossa vã filosofia.”
O mito não é superstição, mas uma narrativa quase sempre com fundo religioso ou moral. Se não retrata a verdade, tem verossimilhança. Na realidade, o estudo dos mitos acaba por revelar-nos surpreendentes identificações com a vida cotidiana. Um dos mitos piracicabanos mais respeitáveis – para não dizer atemorizante – é o que diz respeito à Igreja de São Benedito, a igreja dos negros, dos escravos. Quem não acreditou não sobreviveu.
Diz o mito que as almas dos negros escravos mortos sempre punirão aqueles que atentarem contra a igreja do santo, na Rua do Rosário. Coincidência ou confirmação, tivemos três prefeitos que se complicaram quando tentaram mexer com o templo, ora para derrubá-lo, ora para reformá-lo: Luciano Guidotti, o primeiro, morreu repentinamente; Salgot Castillon – católico fervoroso mas desprezando a lenda – foi cassado pelo golpe militar; Cássio Padovani, outro que teve a audácia de mexer com o templo, também faleceu. E Adilson Maluf – que tem Benedicto também no nome – foi salvo por sua santa mãezinha, devota de São Benedito, que lhe implorou não mexesse com o santo. Atendeu a mãe, foi poupado.
No entanto, uma das lendas mais estranhas – mas que tem sido confirmada – em nossa terra nos chega desde os primórdios da povoação. Nossa Senhora dos Prazeres era, então, o oráculo da cidade, a padroeira. Mas o povoador, Antônio Correa Barbosa – e o Morgado, que levava Antônio também no nome – decidiu trocar de santo. No lugar de Nossa Senhora, entronizou Santo Antônio. E consta que roubou a imagem da santa durante a madrugada, quando os índios e a povoação dormiam.
Mas os moradores da povoação juraram ter acontecido um milagre doloroso. Insatisfeita com a troca, Nossa Senhora foi levada aos céus por anjos e, do alto – quando chegou à curva do rio – olhou para a povoação e, entristecida, profetizou: “Esta nunca será uma cidade grande.” Não se sabe se foi uma profecia para o bem ou para o mal. Pois jamais ser uma cidade grande – realidade que perdurou por estes dois séculos e meio – foi uma bênção para Piracicaba que pode manter sob controle as dificuldades sociais, sabendo organizar-se, criando condições admiráveis de vida para seu povo, construindo uma história de sustentabilidade, de cultura própria, de dedicação à educação e às artes. Nunca fomos uma cidade grande. Mas sempre fomos uma grande cidade.
Agora, há os que se rejubilam com a idéia de Piracicaba ser uma cidade grande, com cerca de 500 mil habitantes, com um percentual de veículos assustador, com toda a violência e insegurança, neuroses e terrores de uma urbe que inchou, que cresceu em tamanho sem cuidar da maturidade do espírito. Isso não é bênção, mas castigo. Talvez, a partir de agora, possamos entender melhor a lenda e o que os nossos ancestrais contavam. Pois pode ser que Nossa Senhora nos tenha advertido: “Jamais sejam uma cidade grande”. Para que pudéssemos preservar, cultivar, cultuar e cuidar da grande cidade que sempre fomos.
Vale a pena notar que, nos últimos anos, o culto e a devoção a Nossa Senhora dos Prazeres foi recuperado, com o santuário dela justamente em Vila Rezende, muito próximo da curva do rio. Por que não acreditar que ela devolverá a sabedoria e o bom senso aos governantes, para conseguirem frear esse inchaço desenfreado, esse caos que nada tem a ver com crescimento? Talvez, ela esteja, ao retornar, orientando-nos: “Não sejam cidade grande; sejamos uma grande cidade”.
Que os anjos – que a trouxeram de volta – digam amém.