Lembranças de um velho aldeão (4) – Resgatar o sagrado

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“Pois, na nesga de céu que conseguirmos observar, há tão incontáveis pontos de luz que a nossa imaginação se encabula. Supõe-se sejam dois septilhões de estrelas.” (imagem: PayPal.me/FelixMittermeier, por Pixabay)

A alguns, parecerá anacronismo e até mesmo tolice o escriba referir-se à “santidade do mundo”. No entanto, pelo contrário, há que se considerar idiotice o materialismo simplista que vê apenas na matéria a causa de todas as coisas. Um mínimo de racionalidade há de levar-nos à admissão do além de nós e do aqui.

Uma noite estrelada, sem nuvens, fala-nos tudo em seu quase espantoso silêncio. Pois, na nesga de céu que conseguirmos observar, há tão incontáveis pontos de luz que a nossa imaginação se encabula. Supõe-se sejam dois septilhões de estrelas. E, pelo menos a mim, é-me inevitável reconhecer: a Terra nada mais é do que grão de areia nesse infinito de astros. E eu, terráqueo e terrâneo, sou apenas um entre os oito biliões de seres humanos. Unzinho só. Não mais canso de repetir-me isso. Para não esquecer.

Fazendo, estamos o quê?  E haveremos de – então, miseravelmente – continuar fazendo-o? O assassínio daquelas quatro criancinhas há que nos ter despertado para o inominável. Para o inexprimível. Ou há quem saiba dar nome ao horror impensável? Não consigo dizer seja apenas luto o que transformou a Quaresma brasileira em cópia ainda mais cruel do Calvário histórico. Sinto ter havido medo coletivo. Herodes ressuscitou?

Este velho escrevinhador não consegue entender a passividade de instituições que, ainda há poucas décadas, tinham consciência de sua responsabilidade social. Nossos líderes entendiam – mesmo que condicionados pelas estruturas – a necessidade vital de, pelo menos, minorar carências da população desprotegida. Uma falsa moralidade passou a insistir na lógica do “ensinar a pescar e não dar o peixe”. Ora, o faminto precisa, antes de aprender a pescar, do peixe que lhe amenize a fome. Num naufrágio, busca-se salvar os que se afogam ou se busca ensiná-los a nadar?

Uma antiga historieta contava – ainda quando havia sanatórios – que um dos internos espantou-se ao ver, olhando pela janela, a correria, as discussões, os atropelos das pessoas nas ruas. “Eles enlouqueceram” – exclamou. Olhasse-nos atualmente, o personagem talvez imaginasse estar vendo uma guerra sem motivo entre os alucinados do hospício. E teria uma certa razão. Pois, de alguma forma, perdemos a razão ao, irresponsavelmente, termo-nos deixado dominar por sistemas de poder que privilegiam tão poucos.

Retorno à “sacralidade do mundo”. Não mais sabemos avaliá-la. E, por isso mesmo, nem a respeitá-la. Perdemos o sentido de a vida ser uma construção que, portanto, requer arquitetura e engenharia. E tempo. Especialistas em exploração de almas e da razão humanas obtiveram êxito em instituir a pressa, a rapidez, o urgente como fundamentais para a sobrevivência. Tornou-se desperdício pensar. E uma inutilidade, refletir. Pois os meios de comunicação de massa estão aí para fazer isso por cada um de nós. E a tecnologia dispensa a inteligência humana, a escolha, a opção.

No entanto, o sagrado existe. E está entre nós, nessa relação permanente entre o humano e o divino. Está na paisagem que nos circunda sem que a percebamos. Está nos gritinhos de crianças que brincam nos poucos espaços seguros que lhes sobraram. O sagrado está no sofrimento de pessoas – talvez, a nosso lado – cuja última esperança é, ainda, acreditar na esperança.

Piracicaba existe nesse mundo. Estamos, pois, impregnados do sagrado que nada tem a ver com bacanais de interesses e de barganhas de alguns. Já há multidões famintas e tal vergonha é a ascensão do profano diante da passividade dos bons. A atual geração de líderes será responsabilizada por esse fracasso.

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