História que eu não gostaria de contar (6)

Imprensa e AI-5

Arrogo-me, com o orgulho e coração lavado, o direito de O Diário ter sido – com meus bravos companheiros de jornalismo – o primeiro jornal brasileiro, ainda que numa cidade média interiorana, a reagir contra a censura imposta pela decretação do AI-5, naquele malfadado dia 13 de dezembro de 1968. Determinei – e meu companheiros concordaram – que todas as colunas do jornal sairiam com espaços em branco, como sinal de protesto. Isso aconteceu imediatamente no dia seguinte, um sábado, muitos meses, portanto, antes do “Estado de São Paulo” e do “Jornal da Tarde” que passaram a publicar poemas e receitas nas colunas censuradas. No domingo, escrevi um artigo virulento, “No país do Chacrinha”. E, na segunda feira, o G-Can de Campinas mandou buscar-me, ordem emitida ao Delegado Joseph Cella que a cumpriu.

No G-Can, o cínico Coronel Cerqueira Lima – amigo dos Guidotti e do MDB de Piracicaba, que se tornaria General na Amazônia – exigiu, de mim, que eu mesmo fizera a censura n´O Diário e autocensura nos meus artigos. Recusei-me a fazê-lo, sabendo, hoje, que aquela valentia era mais ingenuidade do que coragem. Pois ignorávamos o que já acontecia nos porões militares do Brasil. Sugeri, então, que o Delegado Joseph Cella fosse o nosso censor. Mas este, assustado, recusou-se a fazê-lo e o coronel lançou toda a responsabilidade sobre os meus ombros. O Diário continuou manifestando-se e, com jornalistas jovens mas inteligentes, conseguimos criar um código que nos permitia escrever nas entrelinhas. De quando em quando, porém, a indignação se manifestava claramente. E lá ia, eu, novamente para o quartel do G-Can, vezes tantas que não me recordo de quantas. E, sobre mim, uma enxurrada de processos, na clara tentativa de amedrontar O Diário. Enquanto isso, o Jornal de Piracicaba não se manifestava. Passara, sim, a ser contra a ditadura. Mas em silêncio.

Defender Salgot Castillon era, para nós todos, uma questão primordial. Mas perdemos. O MDB venceu. E Salgot Castillon foi cassado. Na manhã de 16 de outubro de 1969, já se sabia que a Junta Militar determinara a cassação dos direitos políticos do ex-udenista, do presidente da ARENA e prefeito de Piracicaba, Francisco Salgot Castillon. Durante o dia, com a certeza de sua punição, ele limpou as gavetas e, à noite, a notícia foi divulgada, oficialmente, pela “A Voz do Brasil”.

Naquela mesma noite, D.Aníger Melilo apareceu, inesperadamente, em minha casa. E, com preocupação evidente – e solidariedade comovedora – insistiu para que eu me recolhesse ao Seminário Diocesano, no Bairro da Nova Suiça, onde estava sendo realizado outro Cursilho. Recusei-me, preparando-me para retornar à redação, a cidade explodindo, a euforia dos “guidotistas” e a tristeza dos demais. Mas Mariana, minha mulher, insistiu para eu atender ao apelo de D.Aníger, que alegava saber do perigo que me espreitava. Fui, mantendo-me, porém, informado e retornando na tarde de sábado. Havia mais notícias perturbadoras: o vice-prefeito Cássio Padovani recusara-se a tomar posse. Outros diziam que o Exército o impedira de fazê-lo. Por três dias, Piracicaba ficou sem prefeito. E, apenas na segunda-feira – e por pressão dos militares – Cássio Paschoal Padovani assumiu à Prefeitura, com sua hormonalidade calabresa que o levava a sinceridades brutais. Inclusive em relação aos militares.

Poucos dias depois, Salgot Castillon foi levado para o G-Can de Campinas onde ficou detido em uma cela presa. Numa segunda cela, estava o prefeito de Limeira, Jurandir Paixão. E, na terceira, eu, o “jornalista subversivo de Piracicaba”, tido como perigoso – a partir daquela cidade pequena – à segurança nacional. Fomos liberados – ou libertados – na manhã seguinte, por influência de Cássio Padovani, que convenceu o novo comandante do G-Can, Coronel Rubens Restell, a nos liberar. Este, Coronel Restell, foi, certamente, o único militar cavalheiro com que se podia relacionar na região de Piracicaba.

Um MDB governista

Os mais supersticiosos – ou os mais sábios? – diriam que uma “caveira de burro” foi enterrada, naqueles anos, em Piracicaba. Em prazo curtíssimo, a cidade perdeu todas as suas mais expressivas lideranças: a cassação de Salgot Castillon, as mortes também repentinas de Cássio Padovani (ainda no cargo), de João Guidotti, de Guerino Trevisan, de Jorge Henrique Angeli, vereadores com carreiras promissoras. Aldovandi e Luiz Guidotti foram esvaziados no poder que tiveram. Ficou um vazio de lideranças a tal ponto que, de repente, fui transformado em “herdeiro político” deles. Mesmo a contragosto – especialmente por um pedido quase patético de D.Aníger Melilo – eu aceitara ser candidato a deputado federal em 1970. E, para minha surpresa, a votação obtida foi realmente significativa, faltando pouquíssimos votos para ser eleito. Amedrontei-me: eu fora candidato apenas para colaborar, pois não poderia deixar O Diário – para o qual eu adquirira caríssimas e pioneiras máquinas offset – e minha família, já com quatro filhos.

Com a morte e enfraquecimento daquelas lideranças, houve uma onda a favor de que O Diário e eu liderássemos a movimentação política de Piracicaba. João Guidotti ainda estava vivo e, nas eleições de 1972, retornou à ARENA, querendo ressuscitar o “guidotismo”. Já havia sublegendas nos partidos, mas ele pretendia o controle absoluto. Um quase garoto, Adilson Benedicto Maluf, me procurou, insistindo em ser candidato por uma das sublegendas da ARENA. Era uma aventura. Mas lhe sugeri se candidatasse pelo MDB, onde poderia adquirir experiência. As urnas determinaram a grande surpresa: a ARENA de João Guidotti, com apenas dois candidatos, foi derrotada pelo MDB – do qual ele fizera parte anteriormente – em votos por legenda. E Adilson Maluf fora o candidato medebista mais votado.

Passo ao largo destes anos, confusos, escandalosos, quando Adilson Maluf se revelou um pequeno ditador, aliando-se ao Jornal de Piracicaba e obsedado por silenciar O Diário. A criatura voltava-se contra o criador. O jovem líder do esfarrapado MDB assumira postura ditatoriais e, em relação a O Diário, determinava o boicote publicitário, a pressão sobre bancos para negarem descontos de duplicatas. E uma das marcas significativas de seu governo foi o nome que ele deu a uma de suas obras públicas: “Avenida 31 de Março”, homenagem do novo e jovem líder do MDB ao dia do golpe militar…

Os processos contra mim multiplicaram-se e cheguei a ser condenado até mesmo por um ”ponto de exclamação” numa das notícias em que se relatava o enriquecimento rápido do jovem prefeito. O pior: não fora eu que fizera a exclamação, mas um dos redatores. O Jornal de Piracicaba fortaleceu-se, a perseguição a O Diário aumentou. E, nesse período – em 1972 – começaram as notícias de torturas e até mesmo de mortes nos porões da Delegacia de Polícia. Um verdadeiro inferno baixara sobre Piracicaba, com a chegada de um cruel investigador de Polícia – mas competente – de nome Lazinho, conhecido por sua brutalidade. Ele desencadeou uma feroz campanha contra as drogas, que nada mais foi do que uma cortina de fumaça. Lazinho estava entre os principais traficantes e soube como controlar delegados, investigadores, influenciando até mesmo o Judiciário e o Ministério Público, em aliança com alguns advogados.

As primeiras vítimas buscaram guarida n´O Diário, que se tornava – sem qualquer pretensão do narrador – na única voz opositora da cidade. E eram drogados e prostitutas, vítimas das brutais torturas daquele investigador que “plantava” drogas para extorquir as vítimas, incluindo pessoas da classe média. Acolhemos as queixas, passamos a ouvir as vítimas, recolhemos algumas em nossas dependência, a Igreja veio em nosso auxílio e, de maneira especial, o advogado Marcos de Toledo Piza, um idealista corajoso. Os depoimentos eram estarrecedores e, ainda hoje, guardo-os em meus arquivos, como lembrança de uma história que eu não gostaria de contar. Diz- me, porém, a consciência de que eu devo voltar a publicar as dezenas de depoimentos de pessoas torturadas e de familiares dos que morreram. Haverei de fazê-lo – nestas minhas cerimônias de adeus – no meu jornal eletrônico A Província. Para que Piracicaba – pelas novas gerações – possa, também, gritar: “Tortura, nunca mais!”

As ameaças recrudesceram. Lazinho passava diante de O Diário com metralhadora em punho. Meus filhos e minha família eram ameaçados. Nossos redatores também. Ficamos sozinhos, mas divulgando todas as crueldades, as torturas inacreditáveis que ocorriam entre as paredes da Polícia. Frei Augusto, capuchinho, dava apoio moral e material ás prostitutas e conseguiu-se – com o apoio da OAB e do Judiciario – fechar a zona do meretrício, então dominada pela cafetina Ruth Mansur. Ela era protegida por políticos. E não mais se tratava de um lugar de prostituição, mas um centro de drogas e de disseminação delas.

No poder, o MDB descontrolou-se por inexperiência e vaidades. Mas permitiu o surgimento – como secretário de obras – de um outro jovem que – este, sim – era movido por convicções ideológicas bem definidas: João Herrmann Neto. Ele fora candidato a deputado federal em 1970, mas tivera pouquíssimos votos. Soube, porém, como captá-los e angariar simpatias. Surgia um lidere carismático.

(CONTINUA)

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