“Anos de Chumbo”: tortura em Piracicaba (6)

Inesquecíveis olhos de Serjão

Cecílio Elias Netto

A redação de O DIÁRIO tornara-se, naqueles tempos, uma verdadeira sala de horrores. O leitor – que, 42 anos depois, lê tais testemunhos – não conseguirá jamais avaliar o que foi, também para nós, ouvir e ver aquelas vítimas. Não mais pareciam humanas, mas animais assustados, trêmulas e, muitas vezes, paralisadas como se fossem autômatos.

De minha parte, nunca mais se me apagou da memória pelo menos uma daquelas pobres criaturas. Era o Serjão, citado num desses depoimentos. Mais do que ele próprio, não consigo esquecer-me dos olhos do Serjão. Saltados como se fossem escapar das órbitas, pareciam duas bolas de pingue-pongue, imóveis, sem vida, fitando o nada. Ele não falava, não se movia, inerme como um morto-vivo. Ficou deitado no chão, lá deixado por amigos que nos procuraram para narrar novos horrores perpetrados por Lazinho, o maldito. E – creia, o leitor – maldito é pouco para qualificar aquela fera violenta e irracional.

Serjão – está num dos depoimentos logo abaixo – era um dos prisioneiros morais de Lazinho, que o usava para levar drogas a quem seria preso em flagrante. Lazinho dera 100 ampolas de Pervitin – droga sob controle, vendida como medicamento – para Serjão entregar a clientes previamente escolhidos. No ato da entrega, Lazinho e sua quadrilha chegavam e prendiam os compradores. Era o flagrante preparado. Mas Serjão era viciado na droga. E, ao receber as ampolas, simplesmente desapareceu por diversos dias, sem que ninguém soubesse onde encontrá-lo.

Certo dia, amigos de Serjão encontraram-no. Ele estava estirado no chão, os braços inchados, veias dos pés infeccionadas, um morto-vivo. Serjão, em vez de preparar os flagrantes, injetara, em si mesmo, as ampolas que Lazinho lhe dera, todas elas, as 100 ampolas.

Doía-nos o coração. E a indignação nos levava – digo-o, pelo menos por mim – à beira do ódio profundo. Lazinho não merecia perdão. E, certamente, nunca o teve. Os olhos de Serjão nunca mais irá sair da lembrança de quem os viu.

 

Reinaldo B., “promotor conversaria com os investigadores”

Declaro, para todos os efeitos, assumindo a responsabilidade pela veracidade das informações, o que segue, autorizando a publicação com a omissão de meu nome, para que não venha eu a sofrer consequência pelo ocorrido:

– Eu, Reinaldo B., brasileiro, casado, 41 anos, alfaiate de profissão, domiciliado à rua Dom Pedro I, fui detido, às 11:30h do dia 5 de junho, em minha residência, pelos investigadores Lazinho, Maquinista, Galo, Fininho e Jura, numa “perua” rural, vermelha e branca, que me levaram para a Delegacia de Polícia, para esclarecimentos:

– Chegando à Delegacia, levaram-me diretamente para um cômodo, ou melhor, um banheiro que existe nos fundos da Delegacia, obrigando-me a me despir inteiramente e me amarrando num “pau-de-arara”, que eles chamavam de “corró”, onde eu fiquei aproximadamente das 13 às 16 horas, levando batidas nas plantas dos pés, com uma espécie de podão de cortar cana;

– depois dessas violências e de me bofetearem diversas vezes, eu fui solto por volta das 20:30 horas, já que não tinha nenhuma declaração a prestar sobre o assunto que eles pretendiam: tóxicos.

– No dia seguinte, dia 6, às 16 horas, os mesmos investigadores retornaram à minha casa, levando-me novamente para a Delegacia, para o mesmo banheiro, onde, novamente, me despiram, me amarraram no “corró”, jogaram água no nariz e na boca quase me afogando, passando, depois, a me darem choque elétrico nos órgãos genitais, amarrando um fio no dedo do pé e a outra ponta nos referidos órgãos, usando um aparelho que dava eletricidade; lá fiquei até a meia-noite, ficando numa cela até que minhas pernas voltassem a se movimentar novamente, aconselhando que eu não “mancasse muito para não aparecer”;

– No dia imediato, por volta das 13 horas, procurei um dos promotores, cujo nome não me recordo, dr. Sérgio ou coisa que o valha, narrando o que ocorrera, tendo a promessa do promotor de que iria conversar com os investigadores;

– No dia 20 de junho, às 16:30 horas, fui detido, novamente, pelos mesmos investigadores, que me levaram para umas casas abandonadas na Estrada de Anhembi e, novamente, fui amarrado e colocado de cabeça para baixo. Depois de uns 20 minutos, concordei, para me ver livre da tortura, em confessar o que eles quisessem desde que me levassem de volta para a Delegacia. Lá chegando, disse que nada tinha a declarar, porque nada sabia do que eles pretendiam. Lá fiquei até as 9 horas da manhã seguinte, quando o Lazinho me chamou, exigindo que eu pagasse dois milhões antigos ao advogado José Gorga que, por sua vez, daria ao referido investigador, exigindo de mim que eu não contasse nada a ninguém, se não seria pior, dizendo que “tem costa quente” em São Paulo.

– Em todas as vezes que estive na Delegacia, eu vi gente apanhando e sofrendo nas mãos dos investigadores; na primeira vez, eram cinco os que estavam presos e, um por um, foram dependurados no corró.

Faço as devidas declarações a fim de que sejam tomadas providências, a fim de que pessoas inocentes não sofram nas mãos de investigadores e da Polícia de Piracicaba.

Piracicaba, 24 de junho de 1972

Reinaldo B.

 

 

Antonio de Pádua, levado a Sta.Bárbara

 Eu, Antonio de Pádua Barros, brasileiro, solteiro, motorista, 31 anos, residente à rua Botucatu 71, declaro que é verdade tudo o que segue:

– No dia 2 de junho, ali por volta da meia-noite, o Lazinho, o Galo pegaram o Marrom lá no Jardim Brasil e o espancaram para que ele contasse onde estava eu, o Portela e o Malagueta. Devo dizer que eu já fui viciado, há uns 5 anos, e estive preso por causa disso, mas fui absolvido, e meu advogado foi o Dr. Ovidio Sátolo; depois disso, nunca mais tive nada com tóxico; essa fase na minha vida já superei.

– Então, ali pelas 11 e meia da noite desse mesmo dia, nós três estávamos na boate da Rute, e lá já estavam os três investigadores, Lazinho, Galo e Fininho. Nós pedimos uma cerveja, mas não mexemos com eles. Depois de um pouco de tempo, eles saíram. Mais tarde um pouco, eu desci pra sede do MAF. Quando eu estava lá, entraram os investigadores armados. Aí o Lazinho me disse: “Nicão, você está preso”. Eu perguntei por que, e ele me respondeu: “Você está preso porque folgou na minha cara lá em cima, na boate da Rute”. Aí ele me deu um tapa no rosto e no pé do ouvido (até estou um pouco surdo por causa disso), e saiu me chutando, empurrando-me para a perua. Viram essa cena: o Luizinho (que trabalha na sede), o Malagueta , o Tenório, e mais gente que não recordo.

– Na hora de eu entrar na perua, o Lazinho me deu uma coronhada nas costas, eu escorreguei e bati com o punho do braço esquerdo na porta do carro. Aí me levaram de novo para o Jardim Brasil, e ficaram dando voltas por lá. Aí eu disse para ele que meu punho estava machucado, eu não conseguia nem mexer a mão, o punho já estava inchado. Eles olharam e disseram que não era nada, e me levaram de novo pra sede do MAF.

– Depois, me levaram para Santa Bárbara; antes, puseram gasolina na perua no posto do Jacaré. Lá na cadeia eles me perguntaram pelo Portela. Eu disse que ele era um bom rapaz. Ele disse que não era um bom rapaz, nada, que ele era maconheiro. Eu neguei, e ele ameaçou dar de pau em mim. Aí eles me deixaram lá na grade. Só o carcereiro viu a hora que eu cheguei. No outro dia, o Delegado perguntou pro carcereiro o que é que estava eu fazendo lá. O carcereiro disse que foram os investigadores de Piracicaba que tinham me deixado lá. Aí ele mandou telefonar imediatamente pra cá, pra irem me buscar, que esse negócio não estava certo, que era problema daqui de Piracicaba.

– Fiquei lá o resto do dia, e ali pelas 11 horas da noite eles me libertaram. Não me perguntaram nada, não assinei nada. Aí eu vim embora pra cá.

– No dia seguinte, eu fui no Peixe para ele ver o meu braço que estava doendo e inchado. Ele me enfaixou a mão e eu fiquei uns 15 dias assim.

– O Lazinho quer mandar e desmandar lá no Jardim Brasil. Ele dá uma hora pra gente deixar o local, proíbe de andar com esta ou com aquela menina, etc.

– O que estou dizendo aí em cima é a pura verdade,

Piracicaba, 4 de julho de 1972

Antonio de Pádua Barros

 

Luiz Eduardo, crianças eram testemunhas

Eu, Luiz Eduardo Herling Martins, 20 anos, residente à avenida Clemente Ferreira, 817, em Piracicaba, declaro o seguinte: aproximadamente duas semanas antes de ser preso em flagrante, em junho, fui conversar com o ex-policial Valdir, pois soubera que o Sérgio queria falar comigo. Fomos, com um carro de praça (taxi) e aproveitamos para conversar na saída para São Paulo. O Sérgio, então, contou-nos que havia recebido 100 (cem) ampolas de “Perventin” do investigador Lazinho, sendo que deveria usar as ampolas para preparar flagrantes para mim, para o Valdir e para a Mazola. Explicou que, caso não fizesse isso, o Lazinho, havia dito que iria matá-lo, porém, o Sérgio explicou que já havia consumido o tóxico e que, caso fosse obrigado a preparar o flagrante, teria que conseguir mais ampolas com o investigador Lazinho. Nós três, então, começamos a discutir um jeito de fazer com que o Lazinho caísse em sua própria armadilha. Posteriormente, o Sergio tentou entrar em contato, duas ou três vezes, com o Lazinho, lá na Delegacia, através de telefone, não conseguindo contato. A intenção era a de fazer o Lazinho marcar encontro com o Sérgio, entregando as ampolas para ser preparado o flagrante. Nós, então, levaríamos duas ou três pessoas bem relacionadas na cidade, cujo depoimento fosse preciso e respeitável, para que testemunhassem a ação do investigador, que distribuía tóxicos em grande quantidade para preparar flagrantes. Como não foi feito o contato naquele fim de semana, pois o Lazinho estava viajando, se não me engano tinha ido para Campinas, e eu precisei ir trabalhar na outra semana, somente na outra sexta-feira consegui falar com o Sérgio. Fui informado que ele (o Lazinho) me queria de qualquer maneira, porém resolvera esperar um pouco para me pegar, pois ele estava meio desconfiado de que eu sabia de algo. A decisão, segundo o Sérgio, era de que o Lazinho avisaria o dia em que o flagrante seria preparado. Resolvemos esperar até o Lazinho entregar as ampolas de tóxico para o flagrante, a fim de prepararmos a ação contra o investigador. Na outra sexta-feira, estando eu em Piracicaba, fui avisado de que o Valdir queria falar comigo. Fui até a casa do Valdir, isso por volta das 18,30 horas, e encontrei-me com o Valdir, o Sérgio e uma criança de 3 anos aproximadamente, que estava no colo do Sérgio, e um moleque de uns 12 anos, um crioulinho. Todos nós fomos de carro (taxi) até a casa do Sérgio. Lá chegando, encontramos o Lazinho, Dore e Gallo, que nos prenderam. Além de nos algemar, apontou uma metralhadora para nós, chegando a encostar a arma no meu rosto. A criança foi deixada na casa do Sérgio. Os investigadores estavam usando um carro particular, e fomos revistados, nada sendo encontrado. Pagamos a corrida de táxi, que foi dispensado. Fomos algemados todos, com exceção do Sérgio, sendo que Valdir foi algemado num dos meus braços, e eu fui algemado juntamente com o menino, menor, de aproximadamente 12 anos.

Nós quatro fomos para a Delegacia, inclusive o garoto menor de idade, sendo que ficamos na sala de plantão. Fomos novamente revistados, nada sendo encontrado; perguntei por que estávamos sendo presos, sendo respondido que era para averiguação. Ficamos aproximadamente 40 minutos na sala, sozinhos (os investigadores saíram). Depois, o Lazinho voltou e disse para irmos com ele, que iria revistar o carro (taxi) no qual tínhamos feito a corrida até a casa do Sérgio. O carro estava na frente da Delegacia, sendo que o motorista havia sido enviado à Delegacia, com o veículo permanecendo estacionado, na frente da Delegacia, mais de 20 minutos, sem ninguém no interior ou vigiando-o. Lazinho e Fininho revistaram o carro, encontrando, em baixo do banco da frente, lado direito, do taxi, quatro cartelas de “Stenamina”, sendo, então, dada voz de flagrante para nós. Ficamos na Delegacia, sendo chamado o Tenente Mansur, por ser eu ex-cabo do Exército, foi lavrado o flagrante, sendo que uma das testemunhas, ou melhor, a testemunha chamada pelo Lazinho para observar o flagrante declarou que nunca vira o investigador , o que não é verdade, pois naquele mesmo dia, às 11:30 horas, quando eu desembarcava do ônibus de Campinas, vi Lazinho e a testemunha em questão (não sei seu nome) conversando, lá no ponto de autos da Estação Rodoviária. É o que tinha a declarar, a bem da verdade, para que realmente seja feita justiça em Piracicaba.

Piracicaba, 10 de julho de 1972

Luiz Eduardo Herling Martins

1 comentário

  1. Carlos A.A.Campos em 24/03/2014 às 14:04

    Náusea. Piracicaba sob o Terror.
    Sinto que precisamos ouvir as opiniões das autoridades atuais a respeito desses acontecimentos bárbaros. Penso em um repórter mostrando essas declarações, esses depoimentos, ao senhor prefeito, ao senhor presidente da câmara e demais vereadores, aos meritíssimos juízes de direito da comarca, aos senhores representantes do ministério público de hoje, ao senhor delegado seccional e demais delegados, aos investigadores da atualidade e também aos comandantes da polícia militar de Piracicaba; o senhor bispo poderia também ser entrevistado. Os donos dos jornais de hoje e seus funcionários jornalistas poderiam também opinar. Gostaria de ver todas essas pessoas se posicionando diante dos horrores por que passaram essas gentes vítimas de torturas. Não teríamos com isso uma, se é que seja possível, resposta a esses responsáveis jornalistas de hoje que republicam as adversidades que contemplamos nessa histórica reportagem com o peso do desconforto de termos que apelar para a tolerância fisiológica¿ Pensamos em esclarecimentos aos cidadãos de hoje que ignoravam esses terrores. Dá para acreditar que isso não se repetirá, que não se repete em delegacias do nosso país neste instante¿

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