Professor Cotrim: mestre dos mestres
Uma das tristezas – que carregarei comigo – é a de não ter-me despedido do professor Benedicto Antônio Cotrim, o professor Cotrim. Soube de sua morte através da magnífica crônica da Marisa Bueloni. E tão belo foi o que ela escreveu – reproduzindo com fidelidade emocionada – o que milhares de ex-alunos dele sentem que me recusei a opinar sobre ele. Marisa dissera tudo. E eu, com um sentimento triste de não tê-lo visto pela última vez. Em seu caixão, eu beijar-lhe-ia as mãos. Como a de um pai espiritual a quem agradeceria o muito que me ensinou. E como o mestre dos mestres, cuja perda é insubstituível.
Conheci o professor Cotrim ainda nos meus 10, 11 anos, ainda nos 1950. Ele se apresentara em nossa sala de aula, de alunos da 1ª. série ginasial do então recém criado Colégio Dom Bosco. As instalações, provisórias, eram ao lado da Igreja dos Frades, na esquina da Alferes José Caetano. A disciplina era rígida, diria que quase militar. Se, à época, queixávamo-nos das exigências, passaríamos a ser gratos quando, anos depois, ela nos serviu como porto seguro ao longo da vida. O professor Cotrim – ex-seminarista, mas ainda jovem, casado – era um homem de feições sérias, rosto espartano, mas de voz e gestos amáveis.
Eu já sentia uma atração irresistível por ler e escrever, mas tinha até medo de pensar em ser escritor. Tratava-se, à época, de uma “atividade maldita”. Escritores, poetas, artistas eram ligados à vida boêmia, tidos como sonhadores, muito próximos do irrealismo. O professor Cotrim deu-nos, primeiramente, aulas de Português, de gramática. Sua didática era mágica, pois, ao mesmo tempo que seduzia, ensinava. E aquilo me fascinava, levando-me a querer mais, a ir além. E, já no primeiro ano, os meninos eram ensinados a exercer a imaginação e a redigir descrições, composições, a abordar temas desafiadores. O professor Cotrim ensinava, corrigia e cobrava. Mas sabia cobrar com uma arte diferente, quase paradoxal: suave e exigente.
Ele foi um mestre múltiplo. Para minha turma, o professor Cotrim deu aulas de Português, de Francês, de Latim, de Literatura, de História. E, por incrível pareça, de Matemática! Eu – sei lá se por minhas origens árabes – adorava Matemática mas não conseguia entender. Tornei-me um desastre total e se fui aprovado ano a ano foi por um acerto com colegas meus: eles faziam meus exercícios e provas de Matemática e Desenho e eu corresponderia ajudando-os em Português, Francês, Latim. Até hoje, quase não acredito, mas – em troca do que eles me faziam com a Matemática e o Desenho – eu escrevia 17 composições diferentes, versando sobre o mesmo tema. Era uma festa e foi-me um incrível exercício de imaginação.
O professor Cotrim – meu amado mestre – percebeu que eu tinha algum talento, a minha curiosidade, a vontade de aprender mais e se ofereceu a dar-me aulas extras, particulares. E sem nada cobrar! Assim, duas vezes por semana eu ia à sua casa, na Rua Benjamin, e ele me orientava, ensinando-me mais, abrindo-me outros, novos e largos horizontes. Ele me indicava livros que os padres nos proibiam de ler, como, por exemplo, “O Crime do Padre Amaro”, de Eça de Queiroz. E, na Biblioteca Municipal, o professor Leandro Guerrini me deixava levar para casa, mas às escondidas. O professor Cotrim me lançou ao mundo mágico da literatura, da criação, da fome pela cultura. E, por duas vezes, foi nosso paraninfo: na formatura do Ginásio e na do Científico. Tenho – à altura dos meus olhos, na parede, em meu cantinho de escrever – as duas fotos em que ele aparece dando-me o diploma. Vendo-as, a saudade aumenta e a gratidão se multiplica.
Muitas e muitas vezes, dediquei, no Dia do Professor, minhas crônicas a ele, à sua sabedoria, cultura e profunda humanidade. A gratidão é imorredoura. Como, também, as lembranças que ele nos deixou como ferro em brasa marcando a alma. Neste Dia do Professor, não lhe dou adeus, pois quem o conheceu haverá de levá-lo para sempre na memória. Beijo-lhe, tardiamente, as mãos, meu tipo inesquecível, mestre dos mestres.