As “velhas loucas” e contadoras de histórias da Rua do Porto

(ilustração: Araken Martins)

Além de pescadores, oleiros, boêmios, das suas lendas e histórias, a Rua do Porto teve, também, as “velhas loucas”, de quem ninguém jamais se esqueceu. Elas eram as “loucas da Rua da Porto” que, às portas de suas casas, ficavam contando histórias, aguardando filhos e netos retornarem das pescas e das olarias. Loucas na sabedoria e na magia com que viram e viveram o seu tempo.

Eram elas, as velhas, que tiravam piolhos dos cabelos das crianças, das meninas que usavam tranças compridas. Era grande a sujeira das coisas, a falta de higiene, herança de portugueses desterrados. O hábito do banho quase não existia. E quanto disso se queixavam, chorando, as mulheres dos operários belgas que haviam sido contratados para trabalhar na fábrica de Luiz de Queiroz! Elas vinham de cidades européias civilizadas e, na rua do Porto, não tinham água encanada, nem esgoto. Toda água – para lavar, para cozinhar – vinha do rio.

Foto Percivaldo Antonio Carlos Rossato/Olhares

(foto: Percivaldo Antonio Carlos Rossato/Olhares)

A viúva Catarina Bauer podia dizer do sofrimento de todas elas, obrigadas a vender as suas mais belas prendas para famílias alemãs que sabiam valorizar o que elas tinham e que, na rua do Porto, se estragava e não tinha utilidade: roupas de cama e mesa, cortinas, almofadas, toucas bordadas, aventais brancos. Os pescadores e oleiros colocavam bacias na porta de suas casas, com água do rio, lavando apenas os pés, os braços, o rosto. Os cabelos eram besuntados de banha, engordurados para enfrentar a chuva e a poeira. Os pés tinham camadas de “cascão” pois, nas olarias, quando os fornos não funcionavam, o barro tinha de ser amassado com os pés.

E Maria Pituça, a mais louca de todas as mulheres, sempre pronta para ajudar e sempre pronta para brigar, mulher de um só marido mas de muitos homens? Ela era a única que “lavava defunto”. Gorda, despachada, ela tomava os cadáveres em suas próprias mãos, nus – fossem de homem, fossem de mulher – e lavava-os numa enorme bacia de alumínio. E brigava com a vizinhança, até com Nenê Boiadeiro – dono de boiada e de casa importante no início da rua do Porto – Maria Pituça brigou, desafiando-o para o deforço físico. Nenê chamou-a de madama, querendo que Maria Pituça saísse da rua para não ser atropelada pelos bois. Maria pensou fosse palavrão, xingou Nenê, reclamou para o marido. E o homem de Pituça foi pedir informações para Afonso Pecorari: “O Nenê chamô minha muié de madama. É causo de eu matá ele?” Afonso Pecorari explicou que madama era palavra respeitosa, que Nenê Boiadeiro chamara Maria de senhora Pituça.

E tinha a Nhá Zefa, uma das velhas loucas, mulher sem filhos, boazinha de se conviver, que chamava a criançada à a sua porta e, então, para tirar-lhes piolhos dos cabelos. Ela aconselhava enquanto os ia catando: “viu, quanta lêndi? Tem que matá com querosene e pomada de mercúrio com arsênico. É um baque, mata tudo!”

Nhá Quita era a mais velhinha de todas, tão velhinha que nem da própria idade mais sabia. Pequenina, suas tranças eram tão longas que, quando se sentava, os cabelos lhe caíam esparramados pelos joelhos. E contava histórias “dos tempos de antes, casamentos do sertão, os noivos e convidados vindo a cavalo até a cidade, a noiva num cavalo branco, a saia muito comprida e rodada que até cobria o cavalo, chapéu todo enfeitado de flores de laranjeira. E a festa? Um jantar servido de leitoa assada no espeto, muito arroz e cuscuz, o divertimento do cururu, do bate-pé e função, desafio de viola.” Lá mesmo, na venda dos Pecorari, os casórios se repetiam, pois Afonso era, também, juiz de paz. E Nhá Antonia, a mais bonita de todas, que costurava roupa de homem e fazia sabão de cinza e “aparava palha” para fazer cigarro? Nhá Antônia, talvez a mais pobrezinha e, no entanto, em casa de quem toda a criançada entrava para comer o que tinha.

Sentadas às portas das casinhas humildes, costurando ou sem nada fazer, as velhas loucas da Rua do Porto ficavam contando histórias antigas dos tempos do Porto do Araquá – lá pelos lados de Santa Maria da Serra, caminho de Avaré – onde se escondiam os bandidos perseguidos pela polícia, garrucha na cintura, faca e rabo-de-tatu, prontos para matar e para morrer. E, então, à noite – quando os homens voltavam das olarias ou das pescas – as velhas se calavam para que eles, os homens, falassem, contando de suas vantagens, fazendo a criançada aprender.

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