A poesia do cotidiano
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Haverá poesia no nosso dia-a-dia repetitivo e sem grandes atrações? Penso que sim. Basta procurar pelas palavras: ela está lá. A palavra exprime a poesia que vive debaixo de todas as coisas.
As palavras aparecem, às vezes, de modo inesperado. Algumas surgem de necessárias aglutinações que lhes dão sentido e brilho. Muitas se formam pela força de neologismos inevitáveis. Outras pertencem ao momento histórico onde atuam. E há as palavras decorrentes da própria realidade onde foram geradas, completando o sinônimo da nossa absoluta perplexidade.
Algumas palavras contêm o estado da latência e da potencialidade. Existem, são escritas e pronunciadas, passíveis de aplicação e uso, mas escondem-se de si mesmas, pois pertencem ao campo da abstração e do pensamento. E há as palavras que são do gênero da crueza e da morbidez, mantendo suas características e significados, quase sempre dolorosos.
Pronto, há de tudo no reino das palavras. E quem o penetrar encontrará um universo fascinante e perturbador. Um poema se escreve com palavras, mas existe uma poesia oculta em cada minuto do nosso dia, da nossa vida. Muitos fazem de suas vidas um poema, como a idosa senhora de uma foto que corre a internet: ela veste um gracioso avental e pinta flores nas paredes externas de sua residência.
Haverá poesia maior que a de sentar-se num degrau, munido de pincéis e tintas para desenhar flores na fachada da casa? Ah, quanto amor devota ao seu lar esta senhora avançada em anos, florindo uma paisagem que também é moradia. Que doce e delicada poesia não brotará de suas mãos, ao colorir o branco que subsiste sobre tijolos?
Fiquei por longos minutos olhando a foto, para captar esta poesia que está não sei aonde, que vem de algum lugar no tempo e no espaço e abrange tudo o que nos comove por inteiro. É a poesia do cotidiano, que vai além das palavras e não se exprime por nenhum vocábulo, sempre pronto a ser descoberto.
Trata-se de uma beleza que passa despercebida, quando andamos absortos e preocupados com nossas parcelas, mensalidades e compromissos. Haverá poesia na dívida de viver? Façamos de conta que sim. Que o poema transcende os boletos mensais e a fila do banco é uma passarela para nosso coração. As pessoas a nossa volta são atores de alguma encenação onde se canta e se diz versos de amor.
Não. Ninguém pensa nisso indo ao banco, dirá o leitor. Lá não é nem um pouco o local apropriado para tais fantasias. Concordo que não. E tento burlar a regra do bom senso para afirmar que é possível extrair poesia de onde menos se espera.
Tudo está dentro do nosso coração. Até mesmo o cotidiano apático a ser enfrentado pode passar por algum tipo de avivamento, se a alma estiver disposta a sonhar. Tudo está dentro de nós, incluindo a poesia que nos ajuda a ser felizes, não obstante as tragédias perto ou longe.
A poesia sobrevive, apesar de nós. Não há cenário que a contrarie. Ela vive por si mesma, tomemos conhecimento dela ou não. Que eu não perca, ó Deus, a sagrada poesia do cotidiano!…