Temor das palavras

– Texto publicado originalmente no Jornal de Piracicaba em 14-09-2003

Quando me perguntam porque não leio o que escrevi, explico que não o faço por constrangimento. Cada coisa tem um significado em seu próprio tempo. As palavras são misteriosas demais. Acho que mais sagradas do que os números. Ora, se estes, os números, dizem ser um meio essencial para conhecer-se o mundo – como haveria números sem as palavras? São elas, as palavras, que dão nome às coisas. E a palavra é o Verbo. E é o Logos. Por isso, amedrontam.

E a palavra no tempo? E a palavra no espaço? Há um livro, de edição ainda recente, que busca analisar algumas palavras através dos séculos. A tentativa é de mostrar o que elas significavam na “Encyclo-pédie” – para Diderot, d’Alemmbert, Voltaire, Rousseau e outros enciclopedistas – há mais de 250 anos e o que significam hoje. A mobilidade é assustadora. E não tenho dúvidas que, se mantidas algumas daquelas definições, não fossem, aqueles sábios, linchados em praça pública. Como, por exemplo, viam o homem e a mulher.

Na “Encycloopédie”, os humanistas identificavam o homem, em sentido geral, como “ser humano”, e a mulher, apenas como “fêmea do homem”. E este, para o enciclopedista, era o ser ””pensante, reflexivo, que caminha livremente sobre a face da terra”. E, por fêmea, devia-se entender a mulher como o “correlativa ou oposto do macho”, compreendendo-se, por macho, “o sexo do homem na espécie humana” . Diante disso, não será difícil imaginar Voltaire – cabelos esvoaçantes, desesperado – sendo perseguido por turbas de mulheres, falasse, ele, essas coisas hoje.

Não, não dá para reler o que se escreveu. Fernando Henrique já o dissera, ainda que poucos o tivessem compreendido: “Esqueçam o que escrevi”. Mas não devia ser apenas isso. Teria que ser mais, assim como Lula começa a fazer: “Esqueçam o que falei, esqueçam o que prometi”. E cada homem que se voltasse para si mesmo, poderia ir além, mais longe ainda, cada vez mais longe: esqueçam o que eu pensei, esqueçam o que eu fiz, esqueçam aquilo em que acreditei, esqueçam de minhas certezas, esqueçam de minhas convicções.

A reflexão do apóstolo lembra que, quando criança, ele falava como criança, pensava como criança, sentia como criança. Para deixar claro que, quando adulto, será triste se o homem continuar falando, pensando, sentindo como criança. Escrever é assim, também. Viver é assim. Rilke, nas suas cartas a um jovem poeta, explicou tudo: “Não escreva poesias de amor”. Pois, também no amor, chegará um dia de pedir que se esqueça o que aconteceu.

A palavra separa e une; bendiz e amaldiçoa; evoca e expulsa. De repente, acredita-se que ela signifique isso, quando significa aquilo. Lembro-me de ter perdido não sei se um grande amor, se uma grande amizade, por uma simples palavra: talento. Eu falara em talento para dialogar, talento como dom, talento como aptidão. E a mulher se magoou: “Você me chamou de incompetente, de incapaz”, queixou-se. Discordei: “Falei de talento”. Ela insistiu: “Falou de incapacidade”. Tudo desandou, mágoas ficaram, nada mais foi possível reconstruir. Palavras amedrontam.

Já se falou que a Terra era plana e que não se movia. Já se discutiu o sexo dos anjos; já se escreveu que a mulher é obra do diabo para, depois, descobrir-se que um deus apenas poderia nascer de mulher. Não há, pois, que se preocupar com o que se falou, com o que se escreveu. Afinal de contas, as palavras voam. Simplesmente voam. E, deixando de ser criança, o homem não mais fala, nem pensa e nem sente como criança. Bom dia.

 

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