O drama de um ‘doing’

Esse texto foi publicado em 20 de setembro de 1979 em O Diário. E depois selecionado para o livro Bom Dia: Crônicas de Autoexílio e Prisão, lançado em 2014

Nunca estive na Inglaterra e nem me recordo de conhecer, pessoalmente, sequer um único descendente de ingleses. Isso, portanto, significa que minha antipatia é gratuita, sem qualquer motivo racional ou justificável. Não se trata, fique claro, de racismo ou preconceito. Simplesmente, tenho antipatia pelos ingleses. Ou será que é, no fundo, uma inconsciente inveja de quem, sendo incapaz de formalismos, se inquieta com a formalidade? Talvez seja isso. Desajeitado como sou, irrito-me com a “elegância britânica”. Plebeu, deslumbro-me com as pompas do reino de Sua Majestade.

Para mim, Shakespeare, por ter sido inglês, não passou de um chato. E Romeu e Julieta, dois idiotas, moleirões e alienados que, com tanta noite escura, neblina e “fog”, foram incapazes de mandar as respectivas famílias às favas, preferindo morrer a se unir por amor. História mal contada. Coisas de ingleses…

Talvez o meu problema seja até mesmo atávico e, então, a minha selvageria árabe se sinta humilhada com a realeza e o excesso de civilidade dos ingleses. Há, a meu ver, muito nhenhenhém na corte britânica. Ainda há pouco, saiu nos jornais que a inglesada entrou em pânico por causa do Big Ben, o relógio símbolo da irritante pontualidade britânica. O orgulho inglês foi ferido! Tudo por causa de um “doing” a menos.

A tragédia foi a seguinte, conforme os jornais: o Big Ben, ao invés de soar o seu tradicional e rítmico “doing-dong-doing-dong”, deixou de badalar o primeiro dos “doings”. Até no Parlamento a falta de “doing” repercutiu e o Ibope de lá deve ter dado alguns pontos a menos a essa outra chata, que é Mrs. Tatcher, primeira serva de Sua Majestade. Ora, um povo que se alarma por causa de um “doing” a mais ou a menos não merece conviver, no mesmo mundo, com a bagunça brasileira.

Nossa pontualidade tem, institucionalmente, meia hora de atraso. Num país tropical e com o sol fervendo, usamos terno e gravata. No Natal, auge do verão, comemos leitões e leitoas, castanhas e avelãs. Bebemos cerveja no inverno e conhaque no verão. Não temos monarquia, mas veneramos o Rei Momo. Derrubamos um imperador, mas fizemos um Rei Pelé. Não temos um “Jack Estripador”, mas soubemos admitir a tortura oficializada. Não ouvimos a “Hora do Brasil”, mas sintonizamos a BBC para sabermos das últimas. Ora, um “doing” a mais, um “dong” a menos — que brasileiro se importaria com isso? Um povo que chegou a conviver com 100% de inflação, e que está feliz por ter caído para 60%, chamando a isso de milagre, poderá, algum dia, entender os ingleses?

A verdade está com o Zeffirelli: o Brasil é o último país do mundo onde ainda se pode ser feliz. Aqui, nem a miséria é problema social. Miséria dá samba. Falei. E bom dia.

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