Desiguais e mais iguais

Não fosse a Maria, ter-me-ia esquecido da data mui cara, o dia que mereceria champanha e luz de velas. Da conversa com ela, conto depois. Mas Maria –lembrando ter sido minha aluna em faculdade – me provocou-me um estremecimento: “Dia do Idoso”. Mas que raio é isso? E qual a data verdadeira, 27 de setembro ou 1º de outubro. E é apenas um dia ou a semana toda. A Maria avivou-me essas coisas todas. E E explico.

Ora, se fui professor dela em faculdade, isso aconteceu há mais de 40 anos. À época, a maioria dos mandantes e desmandantes da cidade mal tinha pelos no rostos. Ou, no mundo feminino, ainda estivessem longe da menarca. O fato é que, por todos os parâmetros a respeito de idade, sou um idoso. Já sou rodado, vi muitas caravanas passando. E, no entanto, esqueci-me. E esqueceram de mim. Ninguém me cumprimentou. Nenhum filho, nenhum neto. Amigos sumiram, com medo, talvez, de a data ser lembrada.

Mas eu gosto. Especialmente depois do “Estatuto do Idoso”, sinto-me num tempo privilegiado de vida. Passei a ser tratado como um desigual, eis a grande alegria: idoso – como criança e adolescente – é diferente dos demais seres humanos. Parece gestante. Até em caso de incêndio, tem privilégio: mulheres, crianças, gestantes, idosos fogem primeiro. Uma beleza.

Outro dia, indo fazer exames laboratoriais, fiquei à espera de ser atendido. Então, uma gentil mocinha me apontou o fundinho do balcão: “O senhor é ali, naquele guichê.” Diante de tanta gentileza, quase pensei estar com cara de doente. Foi, então, que vi a indicação: “Idosos e gestantes.” Atrapalhado, abati-me: era, eu, idoso ou gestante?

Há poucos anos, passeando na Bahia, aconteceu-me algo espetacular, um momento de glória. Shopping baiano, pelo que pude perceber, é como praia para carioca. Ou aeroporto para paulista, que se emociona vendo avião voar. Em Salvador – num feriado de São João – havia umas 743 mil pessoas no shopping. Na verdade, umas cinqüenta pessoas nas filas dos cinemas. Para mim, eram 500 mil. E eu não entendia o tanto interesse dos baianos no filme da motocicleta do Che Guevara. Será que nunca viram motoca?

Atordoado com tanta gente, eu já desistira de comprar ingresso, quando outra gentil senhorinha baiana fez passar à frente da multidão: “Idosos têm preferência.” Comprei o ingresso, paguei meia-entrada e saí orgulhoso: eu devia ser o único idoso naquela terra, pensei. Na verdade, eu era o único idiota. Pois preferira a motocicleta do Che à belezura das baianas fazendo axé no Pelourinho. Coisa da idade.

Fiquei triste de filhos e netos nenhuns terem-me cumprimentado. Mas admito: eles têm razão. Pois ando fingindo muito, mentindo pra caramba. E acho que eles perceberam. Netinho pede para visitar-me, respondo: “Neste domingo, não, querido. Vovô tá com dodói.” E o coitadinho acredita. Filharada telefona, avisando da triunfal chegada deles. Penso em churrasco, tremo: “Semana que vem, meus amores. Papai tá com pressão alta.” Ou com gota, urticária, qualquer coisa ruim.

Ainda até poucos anos, eu morria de inveja ao ver velhinho “furando fila”. Eu, então, não era idoso. Agora, não passo mais vontade. Estou pensando em andar de bengala para ficar ainda mais fácil. Sou um homem com estatuto especial. Que nem “de menor”. Não sei se idoso é um desigual ou mais igual do que os outros. Bom dia.

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