Memória e morte

pictureTalvez, não haja – nesses nossos tempos tão profanos – mais qualquer interesse em pensar no que já ocorreu. Mesmo assim, acredito eu, é preciso lembrar: Aquiles morreu por ter menosprezado Memória.

Foi simples e trágica a história. Ainda acontece. O oráculo previra a morte de Aquiles nos campos sangrentos de Tróia. Bastaria um erro: que ele matasse, em combate, um dos filhos de Apolo. Alguém precisaria lembrar Aquiles da maldição. O escolhido por Tétis, sua mãe, foi Mnêmon, exatamente “aquele que faz lembrar, o que se lembra”. Se Aquiles ouvisse a Memória, sobreviveria. Mas Memória não estava com Aquiles quando ele matou um dos “filhos de Apolo”, violando o sagrado nas terras de Tróia. Foi a destruição de Aquiles. Por perda da Memória.

As coisas que acontecem em Piracicaba, o desrespeito à história e à ancestralidade, são sinais óbvios e dolorosos de que a morte de um tempo e de um passado glorioso se aproxima. Em nome de falsas e vazias visões desenvolvimentistas, passa-se como que um trator sobre valores sagrados, como começa a ocorrer também no Bongue. Há em funcionamento uma cruel máquina de empreendimentos duvidosos, de um furor industrializante verdadeiramente criminoso, pois sem quaisquer preocupações com a ordem social e com a predestinação histórica de uma cidade. A pouco e pouco, a Memória de Piracicaba vai desaparecendo. Perdemos, ao mesmo tempo, homens que eram guardiães de nossos tesouros. Cada preservador dessa história é nosso Mnêmon, o homem “que fazia lembrar”, aquele “que se lembrava”, como se também encarnando a própria deusa Memória, Mnemósina, a mãe das musas, de todas elas. Penso em nosso Instituto Histórico e Geográfico, que autoridades parecem desconhecer, que líderes ignoram. É, ainda, o nosso museu, lugar das musas. Um dos últimos.

Meu medo por Piracicaba aumenta. Quem haverá de nos lembrar, nos combates cotidianos, de valores que não devemos destruir? Quem não nos deixará esquecer de que Aquiles guerreiros não poderão tocar ou ferir “filhos de Apolo”, como os bárbaros fizeram com o “Nhô Quim”? Com a morte de Romeu Ítalo Rípoli e, depois, de Rocha Neto, o clube, um ícone de Piracicaba, entrou em coma, numa luta quase desesperada para sobreviver, graças aos esforços de alguns abnegados. O E.C.XV de Novembro foi o sagrado do olimpo esportivo de nossa terra. Como Piracicaba pôde ter sido tão cega?

Perdoem-me pela amargura. Mas canso-me de valores soterrados, de ouvir e de ver cascos guerreiros pisoteando campos santos, oportunistas falseando a História, pragmáticos vendo cifrões na arte, na cultura, na sacralidade das coisas e das pessoas, incluindo a universidade sonhada por tantos e por tantos construída.

Ando com medo diante da solidão que chega. Brincando de Aquiles, Piracicaba está matando “filhos de Apolo”. Sem Memória, resta o fim. A Província ainda teima em advertir, no esforço de tentar ser “aquela que faz lembrar”. Bom dia.

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