1964: “pax americana” desmascarada.

O documentário “O dia que durou 21 anos” – divulgado pela Tevê Brasil – poderia ser um desses libelos a, com ferro incandescente, marcar a alma brasileira. O desmascaramento da ação dos Estados Unidos no golpe militar de 1964 – à época, conhecido por todos, mas camuflado pelos golpistas e pela imprensa a serviço deles – deveria permanecer como lembrança eterna. Para, assim, as novas gerações – repetindo o urro de liberdade de Dolorores Ibárruri, La Passionaria – pudessem gritar: “Non passarán”. Pois eles, os golpistas e as forças estadunidenses, passaram e impuseram, ao Brasil, a famigerada “pax americana”. Por longos, quase infinitos 21 anos, os mais vivos e os mais perdidos de minha geração.

Mais do que dramático, é doloroso assistir ao desmascaramento do governo dos Estados Unidos, em especial de Kennedy e de Lyndon Johnson. E é vergonhoso, absolutamente vergonhoso, ver o espírito golpista de militares brasileiros que nada mais fizeram do que seguir uma tradição antidemocrática das forças armadas que instalaram a República neste país. Foram eles – militares, com apoio de elites servis, agrárias, gananciosas – que, com baionetas, criaram a falsa república brasileira, a que não foi dos sonhos de Saldanha Marinho. Nem de Prudente de Moraes. E foram eles que tentaram golpes em 1922, em 1930, em 1932, em 1937, em 1954, em 1959, em 1960 e, finalmente, em 1964. E foi essa mesma imprensa ainda hoje ululante, que deu voz ao golpe, que falseou informações, que criou pânico, que despertou e estimulou ódios.

Ora, João Goulart foi um simples inocente útil, no meio de interesses em conflito. Como tiveram coragem de transformá-lo em líder comunista, ele, que era o maior latifundiário brasileiro da época? Que comunista, a não ser trapalhão, andaria com medalhinha de Nossa Senhora no peito, divertindo-se com belas mulheres e vinhos especiais? João Goulart foi um acidente, pois o grande responsável pela tragédia brasileira foi essa farsa maldita que se chamou Jânio Quadros, transformado, pelos fascistas da época, em moralizador dos costumes nacionais. O golpe de Jânio falhou e os militares, desesperados, tiveram que aceitar a posse de Goulart, mesmo com poderes diminuídos. E não houve, na época, liderança lúcida que acreditasse pudesse, Goulart, levar o país a um destino firme. Havia, isso sim, a grande, a imensa, a formidável expectativa de que, em 1965, Juscelino retornasse, em eleições livres, diretas e limpas. O Brasil sonhava com o retorno de JK. E foi essa esperança das massas populares que amedrontou setores poderosos das forças armadas, do empresariado, da política mesquinha.

Lembro-me daqueles dias e daqueles anos com o sentimento de quem foi roubado, de uma juventude à qual quiseram trancafiar em gaiolas de ouro. Quando penso naquela tragédia, sinto ter vivido um pesadelo e um martírio. Que continuam vivos ao presenciar, ainda hoje, a caterva e as quadrilhas organizadas tentando manter estruturas viciadas e corruptas de um país que começa a dar certo. A “pax americana” foi vergonhosa. Ainda hoje, estamos com sotaque estadunidense. E, ainda hoje, há quem finja desconhecer aquela história ou quem queira inventar outra. A força de um Jair Bolsonaro mostra que aquele tempo não morreu, continuando vivo nos subterrâneos de uma liberdade ainda vigiada.

Esse documentário da TV Brasil – com a publicação dos arquivos agora liberados pelo governo dos Estados Unidos – mostra, com vergonhosa nudez, a humilhação a que fomos submetidos, a desonra imposta à dignidade brasileira. Como é possível haver, ainda, quem aplauda a invasão, a intervenção, o porrete, a dominação? Os Estados Unidos serão o último país do mundo a ter o direito de falar de liberdades alheias, de democracias alheias, de direitos humanos alheios. “O dia que durou 21 anos” é o registro dessa vergonha internacional. De que, aliás, Barack Obama faz questão de ser bom discípulo e herdeiro. Bom dia.

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