A angustiante questão da cultura

A PROVÍNCIA está dando cobertura e espaço de divulgação à realização da proposta III Conferência Municipal de Cultura em Piracicaba, parte de um projeto também estadual. O princípio que nos pauta é o de que toda iniciativa cultural não deve ser ignorada, mesmo aquelas sobre as quais se tenham dúvidas ou se façam indagações. Cultura é uma discussão sem fim que causa conflitos não apenas entre filósofos e pensadores, mas, também, entre povos. É clássica e ainda permanece viva a divergência entre alemães e franceses. Aquilo que é cultura para os franceses, é civilização para alemães; a kultur alemã pode confundir-se com a civilisation francesa.

De minha parte, confesso meu horror e ojeriza a toda e qualquer manifestação de cultura que tenha origem, regras e iniciativas oficiais. Quando é o poder político que se manifesta, há que se considerar todas as implicações existentes na própria natureza do poder. Governos comunistas impuseram culturas comunistas. Assim, também, o fascismo de Mussolini, o nazismo de Hitler. A simples existência, no Estado, de um ministério da Cultura – implicando, como conseqüência, secretarias estaduais e municipais de cultura – deveria ser vista com preocupação. Da mesma forma como, em moral e em filosofia, há uma razão de Estado – que se coloca, muitas vezes, acima da razão das pessoas e da comunidade – pode-se, também, ter a cultura do Estado. Que flutuará conforme o poder dominante. Aliás, é de Marx mas ainda não desmentida ou contestada a observação de “que a cultura dominante é a cultura da classe dominante”.

Uma das atitudes mais respeitosas que o então prefeito João Herrmann Neto foi a de criar, em Piracicaba, não uma Secretaria Municipal de Cultura, mas um organismo a que se deu o nome de Ação Cultural. Cultura é ação continuada, o povo caminhando a partir de seus modos de vida, suas crenças, valores, história, artes, ciência, hábitos, pensamentos. Isso não se impõe, não se projeta, não se planeja, não se organiza. Cultura é sedimentação, soma, acúmulo. Por isso, quando valores mudam é a cultura que muda; quando princípios são preservados, é a cultura que se fortalece.

Ora, vivemos um tempo em que se confunde a cultura verdadeira, real, com a cultura de massa, programada, organizada, explorada com objetivos comerciais. Quando há piracicabanos querendo, em nome da cultura, mudar, alterar ou remodelar aquilo a que chamamos de “sotaque piracicabano”, estamos diante de um atentado à cultura de um povo, intromissões indevidas e perniciosas na alma coletiva.

Piracicaba é fruto de um mosaico cultural de profundas raízes universais. Somos resultado de negros, de índios, de portugueses, de desterrados, de posseiros, de coronéis truculentos, de monarquistas refinados, de republicanos esclarecidos. Somos resultado, também, da influência religiosa, mais do que centenária, de freiras e padres católicos com tradições francesas e italianas. E de missionários estadunidenses com convicções metodistas. Piracicaba, ao contrário do que muitos julgam, não foi um “fim de linha”, mas um nicho de valores e de cultura que abrigou filhos de famílias de todo o país. Em nossas escolas, em nossos internatos, nas faculdades que eram centros de grandes estudos antes mesmo de terem o nome de faculdades.

Antes da Ação Cultural, a Prefeitura tinha apenas uma Comissão Municipal de Cultura, plêiade de homens e mulheres que representavam o que Piracicaba tinha de mai significativo, culto, representativo, com a cultura popular e a erudita unindo-se. Talvez, o grande vácuo que passou a existir foi quando as nossas escolas – e a Secretaria Municipal de Educação – deixaram de, na grade do ensino, transmitir, a crianças e adolescentes, a história, a memória, o folclore, as raízes de nossa terra. Estamos, nos últimos tempos, como uma grande e confusa família cujos filhos não sabem quem foram os seus avós.

Uma conferência municipal de cultura terá, sim, grande importância se, em vez de criar modismos ou impor preferências, for em busca de raízes, de nossa história, da memória, da ancestralidade. Está tudo lá. Não haverá cultura, hoje, se seus fundamentos não forem encontrados na construção de nossa cidadania piracicabana. Bom dia.

Deixe uma resposta