A Câmara e “In God We Trust”
O incidente na Câmara Municipal – quando um cidadão foi convidado a se retirar do recinto por se recusar a ficar em pé diante da leitura de um trecho religioso – correu o Brasil, carregado pelas asas da internet. Foi quase unânime a reação negativa dos que se manifestaram nas redes sociais e em meios de comunicação.
Na verdade, a truculência foi lamentável e não se justifica. No entanto – justamente por estarmos em tempos de temporais morais e civilizatórios – deveria, a questão, motivar reflexões e discussões mais sérias e honestas quanto à promiscuidade entre religião e política. O assunto é sério e profundo. Religião – para a imensa maioria da humanidade – é patrimônio intocável. É o terreno do sagrado, da espiritualidade, da fé. Sua existência, no mundo secular, é impossível de ser contestada de maneira universal. No entanto, nos chamados estados laicos – e o Brasil se diz assim – até que ponto esse conúbio igrejas-partidos políticos, religião-política é admissível?
O Ocidente – majoritariamente cristão, em suas diversas denominações – escandaliza-se com nações do Oriente que vivem verdadeiras teocracias. Nelas, é Deus quem governa, através dos princípios dos chamados livros sagrados. Isso, para nós, ocidentais, soa como um absurdo, um atentado às conquistas de direitos humanos nascidas da Renascença, do Iluminismo, da Revolução Francesa e movimentos posteriormente desencadeados. Deu-se a separação oficial entre Igreja e Estado, respeitando-se o direito das pessoas em relação à sua fé e, também, à sua descrença. Mas as relações indefinidas ainda permanecem.
O Estado, por ser laico, não deveria trazer Deus à sua estrutura democrática. No entanto, a começar dos Estados Unidos, a idéia de Deus está presente até mesmo no dinheiro. Está lá na nota de 20 dólares, como esteve na primeira moeda cunhada naquele país, no hino nacional e como símbolo também nacional: “In God We Trust”, “em Deus confiamos”. As discussões em torno disso ainda permanecem, mas são inúteis, pois arraigadas na alma do povo, na vida nacional estadunidense. Há sessões congressuais, de parlamentos – em várias partes do mundo – que são abertas invocando as “bênçãos de Deus”, mesmo que, em seguida, os debates e os conchavos sejam os mais imorais e escandalosos. Aliás, em tribunais, debaixo de crucifixos, quantas injustiças são cometidas sob a “proteção de Deus”?
Confesso não me alinhar entre os postulam a retirada de símbolos religiosos de edifícios públicos. Igrejas, templos, mesquitas, também estão em espaços públicos. O importante seria, penso eu, dar-se valor ao sagrado ao qual se apela ou que se expõe. Se símbolos forem apenas adereços ou enfeites, não têm qualquer importância de forma que, em assim sendo, poderiam estar lado a lado com nus artísticos. Mas se forem levados a sério, se invocarem o significado de uma ordem moral, se tiverem real e conscientemente um referencial de dignidade – seria, então, o comportamento das pessoas que deveria ser alterado. Com essa simbologia e com essa liturgia, lugares públicos e espaços laicos se assemelham a igrejas. E a mistura entre política e religião é inevitável.
Expulsar o homem da Câmara Municipal foi um ato político ou religioso? Não sei. Mas é hora de nos aprofundarmos mais nessa relação, já que seitas e confissões religiosas estão, cada vez mais, se tornando partidos políticos. Se se dedicarem a atividades laicas, se participarem de atividades políticas – por que isentá-las de taxas e de impostos? Seriam como uma empresa comum. Apenas com produto diferente: comercializam a fé. Bom dia.
A câmara apequenou-se, apesar de ter um número maior de vereadores para a próxima legislatura; escorados em inúmeras eleições e reeleições, nossos pequenos "sobas" dão mostras do provérbio:- "se queres conhecer uma pessoa, dê poder a ela". E os edis mais chegados em religião cristã ignoram a frase de JC:- "A Lei foi feita para o homem e não o homem para a Lei (Mc 2,27-28)", que podemos interpretar como sendo a lei (religiosa ou civil) um caminho para dignificar o homem e não oprimi-lo ou humilhá-lo.
Em nossas notas há também a expressão "Deus seja louvado", se não me engano introduzida no governo Sarney, macaqueando os EEUU.