A difícil arte de ser humano

O tigre e o gato são animais pertencentes à família dos Felídeos. Apenas pessoas imprevidentes ou malucas iriam levar um tigre para dormir em sua própria cama. Pois, mesmo se ou quando domesticado, o tigre é perigoso. Por outro lado, há pessoas sem conto que se deliciam com a companhia de um gato em seus lençóis. Gato e tigre – mesmo pertencendo à mesma família – são, pois, diferentes. Um é um; outro é outro.

O homem é animal da ordem dos Primatas, o “animal rationale”. Uma de suas diferenças com os demais bichos está em que, por faculdades outras, ele pode tornar-se humano. É a sua grande aventura, a passagem do “animal rationale” para o “homo humanus”. Trata-se, na realidade, de árdua arte e engenhosa construção, a que se pode, também, chamar de domesticação. Pois domesticar é tornar o bicho um ser doméstico, animal do domus, da casa, do lar. Se isso não ocorrer, o animal racional continuará sendo, apenas, o bicho homem, sem que, nele, se construa o ser humano.

Ainda que pertencendo à mesma família, o “homo humanus” é diferente do “homo barbarus”. Assim, pois, quando falamos em humanidade, devemos explicitar a que ou a quem nos referimos. Humanidade, em princípio, designa o gênero humano, o que inclui todos os primatas, civilizados e brutos, humanizados e bárbaros, a totalidade da espécie humana. No entanto, será temerário ou apenas tolo dar-lhe um conceito único pois humanidade não está inteiramente acabada, não surge pronta. Trata-se de um processo, de uma construção.

Um dos mais fascinantes mitos da criação do homem parece-me, ainda, o de Adão. Seu criador molda-o a partir do barro, do húmus da terra, da argila. É o que significa o próprio nome Adão: terra vermelha, argamassa. O homem é esse húmus original. Logo, Adão foi esculpido, cinzelado, formatado. Para não ser apenas mais um primata, a sua construção foi feita com singularidades que o diferenciaram. Adão, “animal rationale”, foi esculpido para ser “homo humanus”. Logo, o sentido mais belo do mito está na revelação de o homem ser – ele próprio – o artífice de sua verdadeira humanidade. Pois, antes de mais nada, o homem é uma idéia. E a obra de se tornar humano se realiza através de uma arte especial e difícil: a arte de ser nobre e generoso. O homo-barbarus é um bruto.

O humanismo grego é a pedra angular dessa construção. A cultura, o conhecimento, as artes, a dimensão moral do homo-humanus são heranças imperecíveis deixadas por seus poetas, artistas, filósofos e sábios. E um deles – o pouco citado filósofo Frídico – definiu o homem como sendo aquele que tinha a formação grega, a humanista. Logo, não bárbaro, não bruto, não apenas primata. É, pois, o animal educado para viver em sociedade, burilado pela educação, pela cultura, pela beleza, governado pela lei moral. Essa idéia de homem se estende ao coletivo, à humanidade enquanto conjunto de homens. Há que haver, pois, uma ética em movimento, a árdua caminhada em direção à justiça universal, sob o império da lei moral. Por isso, um dos conceitos mais argutos de humanidade nos vem de místicos e de pensadores quando dizem que “pelo material comum de que é formada, a humanidade é uma fraternidade.” Se não o for, “não vale mais do que um gênero superior de animais.”

Algumas dessas reflexões, fi-las, eu, num ciclo de conferências promovido por antigos professores da USP. A mim – que não sou uspiano – coube-me o desafio de discorrer sobre decadência social e degeneração da civilização ocidental. Tentei enfatizar que a palavra humanidade contém – além de sua referência ao gênero humano – a cortesia, a benignidade. De tal forma assim é que um antigo advérbio latino – “humane” – tem um sentido nobre: significa mansamente. É a ideia do homem benigno, manso, cultivado, construído. O homo-barbarus nada tem a ver com isso.

Tais considerações, volto a fazê-las a partir de uma experiência pessoal amarga, mas riquíssima, com a barbárie. Convenço-me, definitivamente, da necessidade imperativa da construção do homem a partir do verdadeiro humanismo. Estamos assistindo a uma verdadeira infestação do homo-barbarus, por derrota do homo-humanus que abriu mão de construir uma sociedade que busque o aperfeiçoamento moral. Tenho, hoje, plena consciência, certeza absoluta: não há possibilidade de conviver com animais primitivos num mundo que se pretende rico em humanidades. O tigre não pode ser levado para dentro de casa. É, apenas, uma fera.

Agradeço o carinho e a solidariedade de leitores e companheiros desta casa. A difícil arte de ser humano é árdua. Mas vale a pena. A beleza acabará vencendo a feiúra.

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