A doce alma de cientistas

picture (16)Na verdade, na verdade, ninguém conhece ninguém. Somos, cada pessoa, apenas imagens por nós mesmos e por outros construídas. Volta-se à velha questão: a versão é diferente do fato. Mas, quase sempre, a versão é mais ventilada do que o fato. No clássico e formidável western “O homem que matou o facínora”, de John Ford, a vida humana se desnuda com todas as misérias e grandezas. John Wayne, Edmond O´Brien, James Stewart são como que ícones universais dessa saga que ainda se repete. E é nesse filme que a frase, que se tornou bíblica do jornalismo mundial, é perpetrada pelo velho jornalista: “Quando a lenda for mais interessante do que a realidade, imprima-se a lenda.”

Não somos o que pensam sejamos. Mas acabamos sendo, para outros, o que inventamos para nós mesmos, o que sonegamos ao outro ou o que, enfim, criaram para nós. A pergunta que deveria impor-se: cada ser humano é uma lenda? Talvez, seja. O avô, uma lenda para e dos netos; os filhos, lenda dos pais. Acho que seria por aí. Mas sei lá.

Estou pensando em velhos amigos, alguns já idos, outros felizmente ainda caminhantes na vida. Amigos cientistas. E que lendas se criam a respeito e em torno de homens de ciência! E que lendas, talvez, eles mesmos criem para si mesmos. Estabelecem-se clichês rígidos: cientistas são frios, gente excêntrica, racionalistas pétreos, insensíveis às emoções humanas, apenas cerebrais, até mesmo sem alma. Algo assim. Como aquela história de cada um de nós ter, um pouco, de médico, de poeta e de louco.

Ao início de outro livro que escrevo, bateu-me, outra vez, a doída, machucada saudade do meu amigo Malavolta, o cientista Eurípedes Malavolta. Nunca entendi nada da ciência dele. Mas ele entendia de gente, de ser humano, de vida. E era a ele – e não a especialistas em literatura, em lingüística, em redação, em estilo – que eu sempre recorri nos livros que escrevi nestes últimos 20 anos. A ele e a outro amigo admirável, o também cientista Otto Jesu Crocomo, poeta e humanista. Malavolta dissecava cada palavra, cada frase, horrorizando-se diante do que pudesse esbarrar numa simples hipótese de banalidade. Otto Crocomo esmiuçou, desde meu primeiro romance em 1965 (“Um eunuco para Ester”), a alma de cada personagem, um esgar de dor, a entrega de alguém a partir de um sorriso.

Cientistas – dos que encontrei na vida e pelo que passei a entender – são os mais delirantes sonhadores, visionários os mais voejantes em mundos de fantasias que, no final das contas, acabam dando certo. Dizer que poeta é sonhador não passa de besteira. Poeta é apenas fingidor, mentiroso. Sonhador é cientista, que voa pelo que não existe e, do abstrato, cria o concreto. Certa noite, tomando vinho com o Malavolta, na sua saleta aconchegante, ao som de Mozart, ele tentou me provar que, num parágrafo de “Pastorela”, eu havia escrito a frase em sol maior, meu sonho de vida. Ele, Malavolta, estava delirando. Interrompi a música, deixei a taça ao lado da poltrona, levantei-me: “Ou você pára de delirar e de poetar ou eu me vou embora, ô, cara.” E ele voltou a por os pés no chão.

Quase em seu final de vida, o imensurável professor Salvador Toledo Piza entrou em minha redação, em “O Diário”, e, com timidez que lhe dava gagueira, me presenteou com seu livro de poesias. E, no final da vida, ele – que se proclamou ateu por quase um século de sua existência – fez-me um pedido comovente. Toledo Piza, com olhos cândidos, me pediu: “Cecílio, eu ficaria tão feliz se você pudesse me dar um desses crucifixos que vocês, do Cursilho de Cristandade, carregam no bolso…” Dei-lhe o primeiro que encontrei numa de minhas gavetas. E os olhos de Salvador de Toledo Piza Júnior, o cientista inigualável, brilharam tanto que, então, eu me senti Papai Noel, atendendo pedido de Natal de um menino carente.

Vou conversar dessas coisas, numa mesa da Arapuca, com o meu amigo Murilo Graner, cientista emérito, cujos olhos apaixonados passeiam pelo rio, cuja alma tecida com fios de seda entende o vôo da garça e ouve o canto das avezinhas em cada hora do dia. À falta de Malavolta, diante da solidão de mosteiro do Otto, vou ouvir o Murilo, amigo de juventude, que, sendo cientista, delira e voa mais do que eu, simples escrevinhador. Bom dia. Bom dia. (Ilustração: Araken Martins)

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