Acabou-se o que era doce

Era doceNo dia 24 de junho passado, fiquei aguardando o relógio marcar as 10 hs da manhã. Era o horário, daquele dia, em que minha mãe me contou ter eu nascido. Quando os ponteiros marcaram as 10 hs, dei por encerrada, conforme já contei, o jornalismo investigativo, de denúncias, de enfrentamentos que desenvolvi por 54 longos anos. E, então, comecei o livro que pretendo seja o último de minha carreira, tal o esforço que demandará, tal o tempo que exigirá de mim.

Tomada a decisão e iniciada a nova jornada, digo que, agora, são metas proustianas que me encantam e que me desafiam. A indignação continua a mesma, mas não posso e nem devo mais travar combates em que me sinto cada vez mais solitário e, na maioria das vezes, ridículo, como daqueles tragicômicos D.Quixotes diante de moinhos de vento. Ora, é preciso rever e rever-se, olhar e olhar-se e, então, entender que tudo mudou, incluindo o povo, ou especialmente ele. Pois, mesmo com campanhas solitárias de alguns – como a da vitoriosa ficha limpa – há uma apatia quase geral diante de escândalos, da corrupção, como se o cansaço tivesse abatido a população e o convívio com o mal o tivesse banalizado. Há uma cegueira proposital diante de grandes negociatas, de roubalheiras, de infâmias contra o povo. Incluindo grande parte da imprensa.

Dedico-me, pois, com entusiasmo renovado, a esse livro que vou contendo para não escapar em jorros, tal a ansiedade e o agora para mim quase inacreditável volume de acontecimentos, de fatos, de pessoas, de mudanças, de transformações. É, sim, uma viagem proustiana, mas não em busca do tempo perdido. Sinto ser o reencontro com o tempo vivido. Esse livro, pois, um outro de uma história iconográfica de Piracicaba – com fotos e postais – somam-se ao sonho de, a pouco e pouco, tornar A Província como que uma pequenina enciclopédia temática de Piracicaba.

No entanto, esse reencontrar o tempo vivido dói, porque há, também, um espaço vivido que se perdeu. Não que pretenda retomá-los, mas por ver o quanto se perdeu, tesouros que se destruíram, valores dos quais descuidamos sem atentar fossem heranças valiosíssimas para as novas gerações. Assim, a cada mergulho na memória, dou-me conta de velhas cantigas de rodas, de historietas infantis, de ditos populares. E sou forçado a uma doída mas verdadeira conclusão: “acabou-se o que era doce.” E nem sequer posso completar o que o povo dizia: “quem comeu arregalou-se.” Pois o doce não foi comido por inteiro, como não se bebeu o vinho saboroso com a delicadeza necessária.

Quando caminho para rever coisas e estabelecer comparações, para contar o antes e o agora, reconstituindo imagens, locais, lugares, até mesmo hábitos, angustio-me com o que insisto em chamar de devastação. Ela começou a acontecer ainda na minha infância e eu mesmo não o percebera. Foi quando o então prefeito Jorge Pacheco e Chaves destruiu o jardim do “Largo da Matriz”, com árvores imensas, passeios belíssimos, pequenino e com um chafariz que Júlio Conceição enviara da Europa. Derrubou-se tudo para a loucura de se fazer um simulacro das Tulherias. As fotos de ambas as épocas, do antes e do depois, mostram a estultícia, a devastação, a tolice.

Onde está o Estádio Municipal e o Ginásio de Esportes foi o fantástico Bosque do Barão, com árvores frutíferas, onde crianças brincavam, casais namoravam, famílias faziam piqueniques. Luciano Guidotti destruiu o jardim do Largo de São Benedito, derrubando as palmeiras imperiais plantadas pelo próprio Imperador Pedro II. E destruiu, também, o Jardim da Ponte, que fora o famoso Parque Sachs, ao lado do antigo Parque Infantil, para construir um hotel municipal. Era um lugar paradisíaco, assassinato em nome de uma falsa modernidade.

Derrubou-se o Teatro Santo Estevão alegando estar minado por cupins, quando, na verdade, buscavam-se espaços para a construção de edifícios verticais, símbolos de poder de uma época. O Hotel Central, centenário, foi derrubado numa noite e às escondidas, para dar lugar a um banco e estacionamento, de propriedade dos mesmos que ainda devastam espaços antes adoráveis. A Ilha dos Amores foi abandonada e sua visão irá desaparecer para que automóveis e caminhões passem por uma nova ponte. Os campos de várzea foram loteados e transformados em propriedades particulares. Chácaras do Piracicamirim, de Dois Córregos tornaram-se condomínios e até mesmo uma capela antiga, a do Rolador, se tornou estrebaria, já preparada para novo loteamento.

É óbvio que tudo se transforma, que o desenvolvimento é um imperativo humano, mas isso não pode significar devastação, destruição, atentado à memória, ao trabalho de outras gerações. Daqui a pouco, não teremos mais nada a ver daquilo que fomos. Por isso, minha ansiedade, minha angústia, nesse tempo que me resta: preciso contar. Enquanto tenho forças. Pois me fica o medo de, de repente, estar também perguntando: “cadê o toucinho daqui.” E eu mesmo responder-me: “o gato comeu.” Bom dia.

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