Admirável mundo artesanal

ArtesanalTornou-se quase obrigatório, nas últimas décadas, reportar-se à reflexão de Giusepe de Lampedusa, em seu celebrado livro “O Leopardo”, quanto a mudanças e transformações. Para ele, era preciso que as coisas mudassem, que tudo mudasse, para continuar como antes. Quem não leu o livro – e me incluo entre os não-leitores – viu no filme, com Burt Lancaster. E esse eu vi.

Mas Lampedusa, na realidade não foi singular. Os franceses, há séculos, sabiam disso: “”plus ça change, plus c’est la même chose”, quanto mais muda, mais é a mesma coisa. Na verdade e no entanto, trata-se de sabedoria milenar, anunciada na maravilha literária e pedagógica do Eclesiastes: “Nada há de novo sob o Sol.”

Para mim, todavia – que vivi à margem de rio caipira, ao embalo de conversas de pescadores – a sabedoria cabocla enxerga, de maneira mais direta, as coisas. O caipira, pitando cigarrinho de palha e à beira do rio, olha, sente, percebe, enxerga, pressente, intui e apenas comenta: “Mudam apenas as moscas, a merda é a mesma.”

Peço desculpas ao leitor, mas me sinto invadido, incomodado, pelas farsas das campanhas eleitorais. Pois eu queria, hoje, estar escrevendo sobre o mundo artesanal que retorna, nas experiências humanas milenares que não foram esquecidas, nas coisas que continuam iguais mas de forma maravilhosamente positivas, verdadeiras, honestas, sábias. Elas acontecem em todas as cidades, sejam grandes, imensas ou pequenas: um mundo artesanal que vai sendo recuperado. São coisas que não mudam, apesar das aparências e violentações. E não mudam por serem humanas demais, demasiadamente humanas. .

Há um mundo silencioso que ressurge na periferia, distante dos shoppings, alheio à mediocrização de escolas e faculdades que fingem ensinar enquanto alunos fingem que estudam. Há um mundo artesanal em ebulição, um mundo de conhecimento transmitido pela experiência de uns para outros, distante da soberba tecnológica e da empáfia das farsas mercadológicas.

Era meu desejo escrever das coisas belas que, apesar das mudanças estúpidas, continuam com a honestidade do que sempre foram. Há, fervilhando, o mundo artesanal do povo, das pessoas humildes, dos sem-diploma, dos sem-universidade, dos sem-empregos-fixos, o formigueiro que movimenta a nação

As cidades são femininas, criadas pela mulher desde as cavernas, para serem lugares de segurança, espaços de viver, de amar, de ter filhos, de educar, de humanidades. Hoje, as cidades estão acontecendo nos bairros, movidos por esse universo artesanal, distante da tecnologia. Retornam os sapateiros, as mulheres que remendam roupas, as que fazem pães e doces caseiros, mulheres que se oferecem para lavar e passar a roupa de uma classe média perplexa e perdida. É um mundo que retorna nas pequenas hortas comunitárias, nos varejões que enfrentam poderosos supermercados, nos brechós, nos farmacêuticos de bairros que começam a sugerir uso de ervas e de chás, retomadas de panacéias antigas. E, para surpreender os grandes veículos de comunicação, um mundo que também se relaciona através de jornaizinhos de bairro, de rádios clandestinas, de blogs, de grupos de internet, de correspondência eletrônica.

Quase mais ninguém tem o médico da família, nem conhece o professor dos filhos. Mas quase todos conhecem, por nome e por amizade, o jardineiro, o eletricista, o encanador, a faxineira, a cozinheira, a zeladora da creche, o dono da mercearia ou do boteco, o pastor do templo, o padre da capela, o líder da associação do bairro.

Já me perguntei – e ainda me pergunto – eu mesmo, o que faço, ainda, por aqui? Mas me consolo e me alivio por saber que apenas penso, contemplo, reflito. E tento dividir a contemplação como quem ouve a bela música, como quem vê o grande espetáculo teatral, que é esse, o da vida. Apenas isso. E bom dia.

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