Apenas um raio

Não me lembro se já contei, mas, se o fiz, repito, repito-me. As imagens vão e voltam, surgem e ressurgem, como se aparecessem à medida em que uma coisa se relaciona a outra. Pensei no raio, nesse único raio, que tanto pânico e estragos causou a Estados Unidos e Canadá. Dele, o pensamento foi ao trovão. E, então, lembrei-me de quando ensinei, ao garotinho, o porquê de trovões ribombarem nos céus. A mãe dele se escandalizou. E, desmentindo-me, começou a falar de eletricidade, de coisas científicas. O menino tem cinco anos de idade.

Em meu colo, a criancinha tremia, assustada com trovões, vendo relâmpagos coruscando o céu. Ensinei-lhe que, rabugento e desocupado, São Pedro inventava mudanças, arrastando guarda-roupas de lá para cá. Mudanças no céu, armários arrastados, eis os trovões. Relâmpagos, raios? Ora, são anjos fazendo festa junina num canto do céu, com rojões e busca-pés. Raios e relâmpagos podem ser balé de vaga-lumes. Ou estrelas dançando cirandinha. Contei coisas de pajé. E o menino acreditou em mim e teve pena da mãe, que não sabia nada das coisas…

Quanto menos sabe, mais o homem acredita em Deus, nos deuses. Acho que Deus nasce do medo do inferno. Inferno, a própria palavra explica: aquilo que está lá embaixo, profundezas, calabouços escuros. Deus e deuses estão nos céus: na Lua, no Sol, nas estrelas. E nos relâmpagos, nos raios, nos trovões. Deus Sol, Deus Lua, Deus Trovão. E o Deus Fogo, na Terra.

Deuses com jeito de gente, acho que os homens os inventamos apenas ao deixar a caverna, quando aprendemos algumas coisas, entendemos outras. Naquelas sombras de Platão, estão nossa história, o início dela. As sombras vistas da caverna contam tudo. De tanto desvendar sombras, fomos trocando a multidão de deuses por alguns poucos, até que ficamos com apenas um. Agora, chegamos à encruzilhada: ou ficamos sem nenhum ou voltamos a ter muitos. Todos, novamente.

O governo do Canadá jura ter sido um raio, um único raio, o responsável pelo apagão em Nova York e cidades da importante região. Foi o bastante, no entanto, para que, da caverna de Manhattan, os homens vissem as mais terríveis sombras, o medo de fantasmas, de demônios. E não passou de um raio, apenas um raio, mas poderoso o suficiente para ser visto como um dardo lançado pela fúria de Deus – ou saído do pincel de Michelangelo – num castigo que, atingindo a usina do Niágara, anunciou o território das sombras, a escuridão, profundezas do inferno.

Brincando de Deus, os Estados Unidos iluminam o mundo com bombas, relâmpagos destruidores, como aquela luz bíblica que cegava quem a olhasse. Foi assim em Hiroshima, o raio enviado pelo deus de Washington. Continua sendo em todo o mundo, para delírio da CNN que, ao vivo e em cores, mostra a chuva de raios, tempestades de fogo no deserto, matanças de homens, mulheres e crianças. E, agora, um raio, um único e prosaico raio – desses que assustavam o menino sentado em meu colo fez Golias tremer.

Raios, porém, são sinais. Vendo-os, pela primeira vez, riscando os céus e ouvindo trovões, sabemos ter sido quando nosso ancestral gerador inventou Deus. Ou descobriu. Talvez – quem sabe? – possa, esse raio providencial, levar Mr. Bush a olhar-se no espelho mágico e, enfim, perguntar-se: “Quem é mais poderoso do que eu?” E o espelho mágico dirá que, mais forte do que a arrogância humana, é um raio, apenas um. Desses que anjos traquinas deixam cair, enquanto brincam de cirandinha no quintal dos céus. Bom dia.

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