As aves e os meninos

Foto: Davi Negri

Éramos, já, todos adultos, casados, com filhos. E, até em seus últimos dias, meus pais nos chamavam de “as crianças, os meninos”. Filhos, para os pais, não crescem nunca. Ainda hoje, não sei se isso é um bem, uma atrapalhação. Mas o coração se enternece, a doçura dos que, amando, ainda cuidam, querem cuidar, aquela quentura confortadora no coração. E lá me vejo, eu, com meus filhos, repetindo o mesmo: “as minhas crianças, os meus meninos”, eles que já estão maduros e me deram netos, alguns já adolescentes.

A experiência do tempo é fantástica, algo de boquiabrir quando se mergulha na reflexão. Não é o tempo que passa, mas nós que passamos por ele, o mistério imutável que parece estar contemplando os entes vivos, as pedras que se não movem, a história que caminha. Andar pelo tempo é aventura fascinante. E, quando a idade se alonga, a experiência se torna ainda mais comovedora pela possibilidade de rever, de manter a memória viva, de reacender lembranças.

De repente, eis que, não apenas com filhos, mas dezenas e dezenas de homens já feitos, eis que me vejo pensando e balbuciando: “os meus meninos”. Pois dei-me conta de, na vívida e vivida experiência do jornalismo, fui um privilegiado acolhedor de talentos e um feliz estimulador deles. Se não são centenas, dezenas são de adolescentes, de jovens, “os meus meninos”, que se tornaram brilhantes, competentes e honestos profissionais, passando pelas redações da Folha de Piracicaba, do Diário, de A Província. Uma molecada, como eu dizia, que desabrochou, pequenas plantinhas que se tornaram árvores frondosas e que deram e ainda dão frutos.

A grande lição, deu-ma o João Chiarini, um dos primeiros a me estimular na carreira mais literária do que jornalística. O João bastava ver um jovem com algum talento ou vontade de escrever, de pintar, de compor, de alguma forma de arte, e lá se ia ele estimulando-o, com elogios que beiravam o absurdo. Ao ver um garoto pintando, dizia: “É um novo Picasso.” Um jovem escritor: “É um novo Jorge Amado.” Um músico: “É um novo Mozart”. Às vezes ou quase sempre, eram jovens pouco talentosos, mas João Chiarini os estimulava.

Um dia, incomodado com aquele falso senso de justiça – pois, para Chiarini, justiça importava menos do que a generosidade – chamei-lhe a atenção: “Ô, João. Você elogia gente que não tem talento algum.” Ele enfureceu-se, explicando: “Tem que estimular, tem que elogiar. Se não tiver talento, fica pelo caminho, desiste. Mas, se tiver, continua, persegue o sonho, caminha.” João Chiarini estava certo. E são incontáveis os que se tornaram brilhantes através de seu estímulo.

Convenci-me daquilo, aprendi com ele. E a rapaziada que aparecia na redação teve meu apoio, meu estímulo. Lembro-me de que, certa vez, anunciando precisarmos de revisores, havia uma fila de candidatos à porta. Passando por eles, vi um jovem que, nas mãos, tinha um livro. Era Flaubert. O moço, pouco saído da adolescência, lia Flaubert. Avisei de imediato o pessoal da administração: “Contrate aquele, o que está com o livro de Flaubert.” O rapaz revelou-se brilhante jornalista, em pouco tempo.

São tantos e tantos os moços que passaram por aquelas redações – “os meus meninos, as meninas, as crianças” – que começo a me emocionar ao me encontrar com eles, homens feitos, e deliciar-me com o sucesso que fazem. Sinto-me feliz, vaidoso, como o pai que vê filhos da carne caminhando felizes pela vida. Hoje, em especial, tendo em mãos o livro “Nosso rio, nossas aves” – dos mestres em fotografia, Davi Negri e Fabrice Desmonts – acaricio, com as mãos, a obra, inflado de orgulho, respirando fundo diante de um tesouro de arte, rio-me sozinho, balbucio: “Meus meninos…” Com participaçção de Luccas Longo, o livro de Davi e Fabrice é um altar onde, como que em ofertório, eles depositaram preciosidades da natureza. O SENAC, ainda outra vez, revelou a sensibilidade de Mecenas para promover essa grande obra de arte.

Davi e Fabrice, lembro-me deles ainda quase garotos, atrevidos, audaciosos, teimosos, bravinhos. E artistas, com uma sensibilidade maior do que seus hormônios juvenis. Era óbvio: a arte brotava-lhe dos poros. E ainda brota. Esses “meus meninos” continuam indo longe. E me envaideço todo. Bom dia.

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