Aviso do infinito
O texto foi publicado em O Diário em 5 de setembro de 1979. E depois selecionado para o livro Bom Dia – Crônicas de Autoexílio e Prisão, lançado em 2014.
Acontece-me algo absolutamente estranho. Comecei, há algum tempo, a escrever uma peça de teatro. Deixei a história e os personagens amadurecerem. Sem pressa. Sem estimulá-los. À maneira do fruto que vai sendo naturalmente sazonado. Quando amadureceram, os personagens começaram a falar, a agir, a tomar corpo. Adquiriram vida e, por dizer, fugiram ao meu controle. Começaram a se agredir, a se relacionar trocando os seus próprios conflitos.
Antes de criá-los, havia imaginado uma história em torno de apenas quatro pessoas. De repente, apareceu um quinto personagem. E ele começou a absorver a história, a ser o seu pivô, o peão em torno da qual os outros começaram a girar. Tudo o que exigiam, eu escrevia. Eles pareciam ditar e nada mais era o que eu queria. Loucura, insanidade? Que o seja, à falta de outra explicação. Foi, então, que não consegui mais prosseguir, chegando a um ponto do qual parecia não se ter saída. Era como se os personagens me desafiassem, propondo-me que eu escrevesse sem a ajuda deles. Emudeceram e eu emudeci. Não se movimentavam, não agiam. Também não me movimentei, não agi. Paramos. Exausto, cansado, rasguei algumas páginas que me pareciam dispensáveis.
Deitei-me. Fumei o último cigarro, a sensação de que os personagens estavam mesmo com vida própria e que eu não consegui dominá-los. Adormeci com o abajur aceso e os óculos sobre os olhos. Então acordei. Olhei o relógio: 5 horas da manhã. Acordei sonhando com minha mãe. E ela me sorria. E seu sorriso era de quem se divertia com a aflição de uma criança. Pois o seu olhar parecia dirigir-se, placidamente, a uma criança. “Domingo de Páscoa…” Sim! Tudo aquilo, os personagens e seus conflitos, suas agressões e competições, a paz fora substituída pela violência. “Domingo de Páscoa…” Só poderia ocorrer realmente num domingo de Páscoa – esse, o recado que parecia vir-me do inferno.
Levantei-me rápido, pedi um café à recepcionista. Voltei à máquina de escrever e as ideias estavam claras, não mais me enfrentavam, nem me desafiavam. As palavras, os diálogos — antes difíceis de serem formulados passaram a fluir com facilidade. Às nove horas, parei, sem forças e sem fôlego.
Terminara a cena que me fora tão desafiadora. Teria, agora, que rever as anteriores. Tudo seria num “Domingo de Páscoa”, como não pude perceber antes? E esse será o título do drama, o recado que chegou do infinito, através de um sorriso lindo e complacente. Nem os personagens, na verdade, sabiam o que escutava acontecendo. Senti, na carne e na alma, o absurdo. O título será agora, “Domingo de Páscoa”, aconteça o que acontecer. E bom dia.