A história que eu queria contar

Sinto-me roubado. Sempre tive a idéia de escrever o romance da Rua do Porto. Dentro de mim — não sei se por causa de minha história pessoal — o umbigo de Piracicaba está ali, sempre esteve.

Ora, fiz a opção de ser um contador de histórias, nada mais do que isso, dê no que der, custe o que custar. Poderei escrever uma história que tenha Paris como cenário, mas será Piracicaba.

Poderei descrever o Sena, mas será o nosso rio. No fundo, no fundo, somente se escreve aquilo que já se viveu. E é verdade: nada há de novo sob o sol. As pessoas são sempre as mesmas, diferindo apenas em sua própria circunstância. Muda o verniz, a natureza é a mesma. Há diferenças de qualidade em ser amante à margem do Sena ou à margem do rio Piracicaba. Apenas isso, qualidade. Os amantes continuarão sendo amantes. Mas eu me sinto roubado porque venho, carinhosamente, tentando amadurecer a idéia de escrever o romance da Rua do Porto.

Quando eu tinha apenas quatro, lá estava eu — levado pelas mãos de meu pai — brincando na Rua do Porto, nadando no rio, acompanhando o Clube de Regatas. Foi à beira do rio e com os pescadores que aprendi a sentir cheiro de chuva, a reagir à mudança do tempo. Ainda hoje, olho para o céu, vejo-o todo azulado e limpo, consigo falar: “Vai chover …” As pessoas riem-se de mim, mas chove. Aprendi com pescadores, sem jamais ter-me deixado fascinar por pescarias. (Ao longo da vida, pesquei apenas uma vez. Tirei um lambari do rio. Não gostei.)

Aprendi a nadar nesse rio, a descer o salto com pneu amarrado na cintura, a ouvir conversas do Tangará, a ver nascer a “Arapuca”, a andar de barco, indo e descendo o rio, do Regatas ao Bongue. (Até pouco tempo atrás, havia,no Regatas, um barco com o nome de meu pai. Ele era um fazedor de barcos, ai que saudade.)

Pois bem. Ando matutando e matutando, deixando amadurecer a idéia de escrever esse romance da Rua do Porto, desde as senhorinhas que iam passear de barco com sombrinhas, passando pelas prostitutas que lá fizeram ponto, chegando a agora, quando a Rua do Porto renasce, floresce, um útero que chama a cidade de volta para o seu início.

E por que me sinto roubado? Porque, vendo esse florescimento da Rua do Porto, aquilo que, em meu livro, seria ficção se mostra como esplêndida realidade. Somente os prefeitos não veem, não enxergam Pintores, artistas, poetas, cantores, família, boêmios, pobres, ricos – lá estão todos indo à Rua do Porto,fazendo uma nova história. É a história que eu queria contar, mas eles já estão contando.

Só não enxerga a beleza dessa Rua do Porto quem for burro demais, cego demais ou insensível demais. E bom dia.

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