Cerimônia das boas vindas

Todo final de ano realizo minhas cerimônias do adeus, de adeuses. Isso aborrece alguns amigos, que fogem de despedidas e de celebrações de finais. Há quem faça figa para espantar o azar. Mas este, o azar, nada mais é do que a sorte contrária. E, nem sempre, por ser contrária significa desdita.

Azares mudam a existência. Por isso, para os alquimistas, azar era a própria pedra filosofal tão buscada e guardada, a pedra dos filósofos. Diz-se, alegoricamente, estar, no azar, o início da sabedoria. E quem a adquire pela prática, não apenas nos livros, acaba conhecendo os mistérios da vida. Os místicos acreditam que azar é o divino oculto no homem, o amor divino consubstanciado. Esse mistério transforma vidas, como a pedra filosofal muda o pedregulho em ouro. Transformar é, quase sempre, realizar a sorte contrária, ser levado a caminhos diferentes, talvez o eterno retorno.

Todo fim de ano é fim de mundo, fim de um tempo. Por isso, quando pessoas picam papéis velhos e inúteis, lançando-os em direção aos céus para levarem-nos os ventos, elas dão, cerimonialmente, adeus a um mundo, a um tempo que acabou. Quando se limpam gavetas, quando se tira a poeira das coisas e também do coração – damos sinais de fim de mundo, de final de um tempo e, ao mesmo tempo, de fé e esperança em um reinício. Acaba-se um mundo para iniciar-se outro. Vive-se o “intermezzo” do tempo sagrado.

Minhas cerimônias do adeus, eu as fiz, novamente, todas as que consegui, para não deixar teias de aranha no coração, cacos de telhas na alma, restos do que acabou. Deixar escombros vivos, isso, sim, dá azar, no sentido da desdita. Pois é desditoso e infeliz preservar o que acabou, conservar o que se estragou, manter vivo o que morreu. São ruins, os espinhos na alma e carne. Alimentar infelicidades e amarguras, manter tristezas como se estivessem grudadas na pele, mais do que tolice, parece-me desrespeito para com a vida. Quem tem medo da busca da felicidade – mesmo sabendo-a relativa e momentânea na finitude humana – fica à procura do sentido de viver. E não há necessidade de qualquer sentido para estar-se vivo.

Têm sido suaves, minhas cerimônias de adeus, nos últimos anos. Suaves, serenas, leves e agradecidas. Agradeci às pessoas que – tendo sido companheiras em viagem por céus estrelados – cansaram-se, escolhendo ficar à beira do caminho. Agradeci os que me importunaram, que me odiaram. Pois, aprendendo a conhecê-los, reconheci a tolice de estar com eles. Mágoas que me causaram, morri nelas e, então, redimi-me. E agradeci – nas ruínas do fim de mundo – o que permaneceu vivo e quieto e sereno, meu refúgio, o lugar de voltar. Após o fim deste tempo e deste mundo, aguardo a aventura de ser parte de novos outros.

Ora, temos mais conhecimento do que nossos ancestrais, mas não somos sábios como eles. Sabendo de coisas, falta-nos a sabedoria de viver. Com um mínimo dela, pode-se – como os antepassados – viver ao ritmo harmônico da vida, do mundo, que também acolhe o caos. Quem for sábio em 2008 , não viverá como se a Terra fosse plana, imaginando horizontes apenas próximos ou distantes demais. E entenderá, ao final de cada dia, que não é o Sol que se põe, mas é a Terra que se prostra, como que em agradecimento e em despedida. E que, em cada amanhecer, não é o Sol que nasce, mas é a Terra que retorna, grata pela noite de repouso. E saudosa da luz.

Em final de ano, despede-se de um mundo para acolher outro, dando-lhe as boas vindas. Como um novo dia, o tempo sagrado. . Bom dia. (Ilustração: Araken Martins)

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