Cólera em conserva

picture.aspxUm velho amigo meu e médico insiste em advertir-me: “É hora de parar de sentir.” Aumenta-me a ansiedade, pois é esse o meu receio, o medo: parar de sentir. Em que se transformaria o ser humano se parasse de sentir? Não seria essa, aliás, a grande tragédia dos tempos, pessoas deixando de sentir as outras?

Sempre que me reúno com jovens e adolescentes, incluindo netos meus, ouço o que dizem e sinto. E não tenho gostado. Pois me fazem perguntas para as quais não tenho respostas. Indagam-me sobre expectativas, sugestões de caminhos e fico em silêncio. Pois, em meu tempo de rever a trajetória, nada tenho a dizer aos que apenas iniciam a caminhada. Sei que eles irão aos trancos e barrancos, experiências alheias de nada valem. Posso apenas estimular-lhes esperanças. Mas não sei em quê. Em quem.

Nos últimos tempos, venho insistindo na importância das encruzilhadas, especialmente no sentido simbólico. Elas deveriam ser, na vida do homem maduro, lugares ou momentos de reflexão, de pausa para escolhas fundamentais. Diz-se, até, que, diante de encruzilhadas, o homem se vê no centro do mundo. De seu mundo. Dele, nada mais resta senão fazer a passagem, que pode ser definitiva. As dos jovens, embora decisivas, são-lhes, quase sempre, encruzilhadas ainda transitórias. Mas, em nosso tempo, para onde ir? Como ir? São algumas perguntas das que me fazem os moços.

Não há como deixar de sentir. Não existe essa hora de parar de sentir. O destino é comum. Logo, se a juventude está diante de abismos, é estupidez acreditar os demais estejamos a salvo. Se as gerações jovens perdem o sentido, eixos ou rumos, desnorteamo-nos com elas também os mais velhos. Pois as encruzilhadas dos moços são, também, lugares de encontros, não apenas deles consigo mesmos, mas com o outro. E, portanto, encontro de gerações.

No início do terceiro milênio, a história humana repete-se diante de outra encruzilhada decisiva. Não se trata mais de discutir a avalancha de novas tecnologias, o ritmo desenfreado da ciência. São conquistas irreversíveis, como se novos Copérnicos e Galileus entrassem, a cada mês, em confronto com velhos Ptolomeus. A novidade de ontem envelhece hoje. Diante da floresta densa, a escolha errada pode levar a caminho sem volta. Os jovens têm essa intuição. E perdem forças.

Moços fazem-me pensar ainda mais nos Gigantes da Alma que Mira Y Lopes transmitiu aos mais antigos: o medo, a ira, o amor, o dever. Nem sei o que sobrou daquela lição. Mas havia, nos moços, a “cólera em conserva” de que o pensador falara. Do medo, nasce a ira. Da chispa desta, a raiva. E, apenas contida, essa “cólera em conserva” inevitavelmente explodirá em ódio. Os jovens estão com medo. É o estopim.

Não sei, pois, o que dizer aos moços. Mas não tenho, para mim, qualquer dúvida quanto à dimensão humana: centro do universo não é a Terra, nem o Sol, nem a economia. É a criatura humana, essa eterna boa nova com sua dignidade insubstituível. Crer nisso exige forças morais que parecem escondidas em nossos tempos. Sem elas, não há esperança. E desesperança é o outro nome da “cólera em conserva”. Não apenas dos jovens, mas de todos. Por isso, sentir inquieta. Bom dia. (Ilustração: Araken Martins.) .

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