Comunhão

Esse texto foi publicado em novembro de 1988 no semanário impresso A Província. Recuperamos para lembrar os 30 anos de atuação na cidade.

Nos jornais que tive ou por onde passei, exigi ter o meu cantinho intimista, este cantinho, onde converso comigo, onde me vejo, onde me olho, meu espelho e meu confessionário – minha necessidade de comungar com alguém.

Amigos me dizem que me exponho muito. E uma velha leitora, com quem troquei apenas duas ou três palavras ao longo da vida, me honrou e me emocionou ao dizer-me que, por acompanhar tudo o que já escrevi em mais de 30 anos de jornalismo, me conhece mais do que ao seu próprio marido e do que a seus filhos.

Ela me fez feliz, muito feliz. Pois aquela leitora me dá o único presente, talvez, que venho almejando em minha vida de jornalista, de jornaleiro, de contador de histórias, de compulsivo escrevinhador: o da comunicação.

O maior dos sonhos humanos é o da comunicação. E comunicar é ir e vir, troca, dar e receber, a conversa, aquilo que é comum, que faz comunhão, alguma comunidade. O sonho mais profundo e suspirado do ser humano é o da comunhão. A comunhão com Deus, com os homens, com a natureza — e, portanto, com o mundo e com a vida.

Comunhão não significa concordância ou entendimento, compreensão ou aceitação. Acho que o nome da comunhão é apenas tolerância.  E a tolerância, penso eu, que faz com que as pessoas se unam apesar daquilo tudo com o que não concordam, com o que não entendem, com o que não compreendem e até mesmo com o que não aceitam. Para isso, acredito eu, as pessoas .têm que se conhecer umas às outras. E a única saída está na busca de cada um para conhecer-se a si mesmo.

Pode parecer um lugar comum filosófico, mas é a única saída. Nunca chegaremos a lugar algum se não tivermos a absoluta certeza de que todos somos capazes de tudo: de amar e de odiar, de dar a vida e de matar, de toda a generosidade e de toda a crueldade, da honestidade e da desonestidade, da sinceridade e da hipocrisia, do bem e do mal, do justo e do injusto.

Desde que se criem normas e leis — somos todos capazes de cumpri-las e de infringi-las, na mesma medida. Ódio e amor, vida e morte caminham juntos, com a mesma capacidade de erupção. As leis podem enquadrar as pessoas, e as enquadram. Mas não enquadram a vida. Todo o problema está -— e sinto isso, muito mais.

Gostaria de lembrar ao meu eventual leitor, especialmente o eventual novo leitor que este cantinho de página nada tem a ver com o jornal onde escrevo. Tem sido assim ao longo da vida, em qualquer jornal que tive ou por onde passei. Como jornalista, percebi muito cedo que o cotidiano do jornalismo haveria de me matar se eu não cultivasse o homem que sou.

O jornalismo tem o poder de desumanizar as pessoas, levando-as a viver com naturalidade o horror do cotidiano. Alguns exemplos: o jornalista policial pode tornar-se igual aos policiais e aos bandidos; o jornalista esportivo pode acabar confundindo-se com os atletas; o jornalista político corre o risco de tornar-se tão político quanto os políticos. Há o risco de criar-se uma segunda natureza. Recusei-me a isso desde o início de minha carreira. Tive o privilégio de, ainda muito cedo, tornar-me dono de meu próprio jornal. Então, pude escrever tudo o que pensei e senti.  

Ainda penso, nessa loucura histórica em continuarmos aceitando que partidos políticos, ideologias, seitas, constituições, instituições, reduzam a vida a espaços tão pequenos. A leitora, velha leitora, que diz que me conhece, deu-me um presente: na verdade, ela me disse que vive o mesmo sonho que eu vivo, o sonho de poder ser humano. E como é bom ser humano, e como deve ser horrível viver o papel de Deus! Bom dia. 

 

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