“D’escrachar” ou “quiuspa”?

Entre os elementos constitutivos de uma nação está a língua. Que, em países civilizados, é tão reverenciada quanto o hino e a bandeira nacionais. Por mais dinâmica seja, por mais se transforme, a língua nacional tem fundamentos sólidos, regidos por leis e regras gramaticais. Trata-se de um tesouro tão valioso que há necessidade de congressos, de leis para que se façam até mesmo mínimas alterações, como ocorreu com o uso do trema, do hífen, de acentuação.

O Brasil, no entanto, está escolhendo o caminho da bagunça e de soluções levianas, mais fáceis na sua aplicação justamente por serem mais medíocres. É como se uma intensa preguiça mental – ou uma explícita confissão de fracasso – norteasse decisões e inspirasse soluções. Veja-se o que acontece com as drogas. Em vez de um combate efetivo, de educação rígida como prevenção, já surgem um movimentos – liderados até por personalidades – para sua liberação. Com a prostituição, a mesma preguiça e a mesma solução mediocrizante: em vez de uma compassiva ação para mostrar o atentado à dignidade da pessoa humana, trabalha-se para oficializá-la como profissão legalizada.

Confesso que fiquei entre rir e chorar com a informação de um tal livro didático – autorizado e distribuído pelo MEC – que admite erros gramaticais, acolhendo como correta a fala popular. Ou aceitável. Pensei em Machado de Assis, em Eça, no Padre Vieira, em Fernando Pessoa, em Cecília Meirelles, em Guimarães Rosa. E a dor aumentou. E vieram-me as lembranças dos bancos escolares, dos estudos, da pesquisa, das leituras, das regras gramaticais, da pontuação, dos tempos verbais, do mergulho nos mistérios admiráveis da língua portuguesa, trabalho de garimpeiro em busca de pepitas de ouro. Como é possível todo esse tesouro da língua ser jogado na lata do lixo da mediocridade, morte sem choro nem vela?

Mas algo me alegra, pois me vejo entre os pioneiros dessa besteira por ter escrito um dicionário do linguajar de minha suave terra caipiracicabana. A autora do livro deu um exemplo de linguagem popular que, segundo ela, deve ser aceita: “nóis pega o pexe.” Ela tentou acertar mas falhou, pois supõe-se seja apenas uma amadora em relação aos mistérios do caipiracicabanês. Pois, há toda uma ciência nessa fala. O “nóis”, por exemplo, não é usado gratuitamente, à toa. Há duas variantes: “nóis” e “nói” e é aí que reside o segredo da linguagem. Usa-se o “nóis” quando a palavra seguinte é antecedida por vogal. Amar, por exemplo. Então é “nóis ama”, ou “noizama”. O “nói” é o mesmo “nóis”, mas se usa antes de palavra iniciada com consoante. Por exemplo: “taca ferro”. Então, se fala “nói taca ferro”, understand? Logo, está errado o que a professora sugeriu, “nóis pega o pexe”. O certo, certíssimo, nesse besteirol nacional, é “nói peguemo o pexe.”

Para alegria do Ministro da Educação, informo que já ouvi, na minha terra, gente comemorando alegremente a nova orientação lingüística: “puta que la merda”, a negadinha exultou, com todo o requinte. Antes, pois, de chorar, fico vaidoso por estar entre os pioneiros nessa tolice nacional, ao ter elaborado um dicionário do linguajar de minha doce, amada e idolatrada terra, salve, salve. Ninguém mais tem o direito de zombar de “nói, cortadô de cana”. Pois estamos na ordem do dia, pondo para quebrar. Aliás, aproveito para, em auxílio à autora do livro, escrever como se conjuga o verbo por em tempo passado, na nossa linguagem popular: “eu ponhei, tu ponhô, ele ponhô, nóis ponhemo, vóis ponhô, eles ponharam.”

Para completar a tolice, atribui-se o falar correto à elite, em confronto com o falar popular. Na realidade, os dirigentes brasileiros estão querendo nivelar por baixo, mediocrizando ainda mais o que já é medíocre. E um dos erros palmares está, em meu entender, nessa mania de falar-se em elite brasileira. Ora, o problema é o contrário: o Brasil não tem uma elite cultural, elite da inteligência, da razão, da cultura. A classe média está sendo avaliada pelo seu poder de consumo de forma que basta adquirir um eletrodoméstico mais sofisticado para subir um degrau nessa falsa escala social. As escolas não mais formam cidadãos para o país, mas mão de obra tecnicamente preparada. As famílias despreocuparam-se com a vocação dos filhos, selecionando, para eles, atividades ou profissões que sejam mais lucrativas. O grande desafio que nos espera é o de conseguirmos formar uma verdadeira elite brasileira, cultural, digna, cívica, decente que seja referencial para todo o povo.

Ao encerrar, fico em dúvida. Recorro ao clássico “é d’escrachar”? Ou, para ser atual, sussurro um lamurioso “quiuspa”?

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