Doces pecados da mocidade

Sophia LorenPróxima dos 80 anos, Sophia Loren posou para fotos nas quais revela a sua sensualidade inesgotável. Vi alguns dos estudos. E tremi. Pois, em mim, vieram à tona doces pecados da mocidade, doces e doloridos. La Loren foi o meu martírio. Vendo-a, ainda esplêndida na sua juventude octogenária, martirizei-me novamente. Sophia é minha penitência. E tenho motivos.

Ora, desde criancinha, ouvi de pai, tios, parentes, a lição marcante e aterradora: “Um homem tem de estar preparado para tudo”. E me jogavam no rio para aprender a nadar. E me ensinaram a subir em árvores, a não ter medo, a não chorar, a enfrentar brigas de quarteirão. Outra lição dos machos da minha família: “Para homem de verdade, mulher de amigo também é homem”. Era um recado: não se meta com mulher do próximo muito próximo.

Confesso nunca ter entendido a oração em que se pede para não cair em tentação. Tentações, acho-as deliciosas, especialmente algumas dos chamados sete pecados capitais, entre as quais se inclui a Sophia Loren. Nas tentações de minha adolescência, ela me deixava em pânico. Pois, vendo-a, mulher deslumbrante, estátua de carne, sedutora, irresistível, eu pensava em minha masculinidade responsável: “Um homem tem de estar preparado para tudo”. E se ela me quisesse? Faria, eu, o quê? Como? Foi meu pesadelo. E passei a ter medo de Sophia Loren, medo pânico, certeza absoluta de, diante dela, tornar-me um fracasso. Volto a pensar nisso, inquieto, ao vê-la toda exuberante, lúbrica aos quase 80 anos. Ai de mim!

A foto de Sophia remeteu-me a doces pecados da mocidade, tão doces que nunca deixaram remorsos. Sempre caio em tentação. A mais doce, acho, foi há mais de 30 anos, eu, homem sério, pai de filhos já crescidos, intelectual metido a besta, lutando por valores democráticos. Éramos um grupo latino-americano, com reuniões medrosas em lugares escondidos. Naquele ano, o encontro seria em um mosteiro do Chile, ao pé da cordilheira. O perigo era Pinochet. E as instruções, rígidas: ir a Santiago fazendo escala em Buenos Aires, aguardando instruções.

No aeroporto de São Paulo, um velho amigo me viu, abraçou-me e me apresentou a noiva, o casamento próximo. Tremi. Ela era a própria Sophia Loren. E tive medo. E ele, grande tolo, ao saber que eu ia a Buenos Aires, alegrou-se ainda mais: “Que bom! Minha noiva também vai e está sozinha. Você cuida dela pra mim?”. As vozes ancestrais atingiram-me o coração, músculos, hormônios: “Um homem tem de estar preparado para tudo”. E uma outra voz, a dos cavalheiros, deu sinal de alarme: “Mulher de amigo é homem”. A moça sorria, maldito sorriso, tudo o que poetas escreveram de uma bela mulher: pele de pêssego, lábios de rubi, dentes de pérolas, olhos faiscantes como estrelas, a gazela bíblica, as taças de vinho licoroso. Exorcizei-me, prevenindo-me: “Vade retro, Satana!”.

Embarcamos com destino a uma Buenos Aires invadida por brasileiros. Ainda no avião, a moça entrou em crise: não sabia para onde ir, não reservara hotel, era sua primeira viagem à Argentina. A voz de meu amigo me pareceu uma súplica: “Cuide dela pra mim?”. E a do código de cavalheiros: “Mulher de amigo é homem”. E a moça estava indefesa como uma gazela, trêmula feito pomba, coitadinha.

Não havia hotel para a bela e infeliz criatura, todos lotados. O gerente de onde eu iria me hospedar, sabendo do problema, piscou os olhos, disse-me que eu ganhara um presente dos deuses. Mas eu tremia, ouvindo os machos de minha família: “Um homem tem de estar preparado para tudo”. E sentia não ser verdade que mulher de amigo é sempre homem. Nem sempre. Mesmo porque um homem — ora, bolas — há que ser cavalheiro diante de mulheres desprotegidas, ao relento. Ora, homem de verdade tem braços de proteger algumas fragilidades femininas. E, se eu fizera uma promessa a meu amigo, tinha de cumpri-la. Cumpri: cuidei da moça.

Cerca de 30 anos depois daqueles doces pecados argentinos, ela me telefonou. Estava viúva e só, pobrezinha. E chilrou, garrulou, trinou. Voltei a tremer. Mas, agora, de tristeza. Pois também aprendi que um homem, no Outono da vida, não está mais preparado para tudo, não. Com medo da diaba, fiz-me surdo aos chilreios dela. Resisti, não caí em tentação, quem diria?

Mas, agora, vendo Sophia Loren aos 80 anos, fico com uma estranha sensação de palerma: e se a de Buenos Aires, nos seus joviais 60 anos, for pêssego que amadureceu, vinho novo em tonel antigo? Acho que, resistindo, fiz besteira. E se tiver sido o canto do cisne?

*Publicada no Correio Popular em 18/8/2006.

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