Prometer, ir longe

BeatlesDeu-me, de repente, vontade e fiquei cantarolando: “Eu amava os Beatles e os Rollings Stones”. Sem estar debaixo do chuveiro, cantei e cantei. Pois sou dos que ainda têm tempo de cantar e assobiar durante o banho. E de pensar, fazendo a barba. Mas o garoto de que eu quero falar era apenas um garoto. E ele não amava os Beatles e os Rollings Stones. Nem sabia de quem se tratava.

Seria, a música, dos Engenheiros do Havaí? Ou eram do “Hawaií”? Não me lembro ao certo e tive preguiça de ir à Internet procurar. Preguiça e cuidado. E se me informassem errado? Pois conheci um outro menino — que também nem sabe de Beatles e Rollings Stones — que me impressionou pela rapidez com que faz buscas na Internet. Ele consegue achar tudo o que procura, mesmo que não seja o verdadeiro. Outro dia, ele precisou fazer uma pesquisa a respeito de Beethoven. Achou rapidinho, estava lá no Google: “Beethoven é um cachorro, filme de grande sucesso na década de 1990”.

Retornando ao garoto anterior, o do primeiro parágrafo. Depois que ele se foi embora, cantarolei, mais alegre do que nostálgico: “Era um garoto que, como eu, cantava as coisas lindas da América…”. Mas me detive, lembrando-me que esse garoto, que cantava as coisas lindas da América deve estar velhusco, pois tema de música lá dos 1980, caramba! Pois, com filhos já adolescentes, eu a cantarolava dedilhando o violão, acho que na escala de sol maior. Ou de dó? Quase arrisco dizer que era tudo a mesma coisa. Ou sol maior era correspondente de lá menor? Sei lá. Na verdade, eu apenas gostava dos Beatles e dos Rollings Stornes, pois o coração amava a partir de Chico, Jobim, Vinicius. E da Silvinha Telles, da Elizete Cardoso, da Maysa — mas essa é outra história. Alegre, mas dolorosa. Pois é doloroso todo o alegre que se foi. Alegria, na verdade, se tem apenas da tristeza que passou, da dor ida, acabada.

Retorno ao garoto. Ele, nas coisas eletrônicas, me atende com rapidezes cativantes, prestezas sedutoras. E com competência que, antes, me causava inveja. Digo antes, de quando pensei fossem, computação e informática magias, feitiços de feiticeiros, bruxarias de bruxos e de bruxas. Quando entendi ser aritmético o fundamento, fiquei feito criança sem o dono do circo. O garoto, na verdade, me socorre semelhantemente ao mecânico de meu carro, que me fala de problemas no carburador sem que eu saiba o que seja isso. No computador e na impressora, o garoto resolve tudo.

E ele me viu quase enlouquecido diante da paralisia do MSN, rosto e lábios de meus netinhos estadunidenses paralisados por uma falha idiotamente informatizada. “Deixe pra mim, pode continuar trabalhando” — falou, querendo e conseguindo me tranqüilizar. Voltei ao meu rameirão, ao cotidiano de minha vida cibernética, de homem com marca-passo no peito e jornal eletrônico na vida. O garoto espiou, falou: “Trabalhando com fotoshop, é?”. E eu, tentando dar mais cinza a uma foto de 1914, respondi, delicadamente: “É…”. E o garoto me deu um tapinha nas costas: “O senhor vai longe…”.

É disso que eu queria falar. O garoto — que não amava os Beatles e nem os Rollings Stones — falou que “vou longe”. E ele sequer percebeu que estou voltando. Que não fui a lugar nenhum. Que rodei, que andei em círculos e, agora, retorno de uma das últimas voltas. Girei. Quem pensa ir longe ainda acredita seja, o mundo, um lugar plano, com horizontes que se não acabam. O mundo é apenas redondo. E giramos em torno dele, repetindo-nos nos mesmos espaços apenas que em outros tempos. Rodando, girando, volteando, circulando, sinto estar no mesmo lugar. Saí do ponto inicial do círculo, dei a volta, retornei. Indo, não se vê nada. Ficando, vê-se o que passou, o que retornará.

Olhei para o menino, querendo ver-me nele. E não me vi. Pois, ainda agora, eu me vejo apenas naquele outro garoto, o que — como eu — amava os Beatles e os Rollings Stones. Algo está errado nisso tudo, pois nunca mais quis ouvir os Rollings Stones. E, dos Beatles, acho que me sobrou apenas o Yesterday, sei lá.

Perguntei ao garoto: “Então, se vou longe, você acha que eu sou uma promessa?”. Pois, desde pequenino, apenas ouvi isso: “Vai longe, é uma promessa”. Promessa de jornalista, promessa de escritor, promessa de marido, promessa de pai de família, promessa de líder comunista, promessa de líder cristão, promessa do escambal. E eu não prometi nada. Prometeram por mim.

O garoto sacudiu os ombros: “Que vai longe, aí no computador, vai. Se é promessa, não sei”. Quase lhe dei um beijo. O menino me deu forças para eu insistir naquilo que mais desejo: ficar, apenas ficar. E que não prometam por mim. Então, cantarolei.

*Publicada originalmente no Correio Popular em 4/5/2007.

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