Dois monstros sagrados

115467-7762-gaNunca me queixei de amargores e amarguras da vida, que são muitos para toda a família humana. Se há problemas, isso é bom, pois problemas existem para ser resolvidos. O que se não pode resolver faz parte da aventura humana. E confundir simples contingências da vida com questões insolúveis é, no mínimo, imaturidade intelectual. E espiritual.

Desde cedo, aprendi que ter nascido foi um privilégio. Plantado no ventre de minha mãe, foi-me respeitado o direito de nascer. O depois – ou seja, a própria vida, a existência – não é direito, mas conquista. Ninguém tem direito puro e simples à felicidade. No entanto, a ninguém pode ser negado o direito de, legitimamente, ir em busca dela. Essa, certamente, é a grande aventura do homem, algo profundamente íntimo, pessoal, que resulta de suas escolhas. De qualquer maneira, porém, nascer é um privilégio, vir à vida é uma graça. Viver é aprendizado de sabedoria.

Mil vezes, acho eu, ao longo de minha carreira de escrevinhador, confessei que – fosse, eu, mais humilde – andaria de joelhos, tais os privilégios que me foram concedidos. Mas, também, conquistados. Escolhas equivocadas, paguei por elas e deixei-as no passado, como um jornal de ontem que não tem mais qualquer serventia a não ser para simples consulta ou embrulhar objetos. Encontrei, na vida – e ainda os encontro –  momento epifânicos, mesmo quando as borrascas pareciam insuportáveis. E, muitas vezes, deparei com o Inefável quando fui apresentado ao Nefando.

Ao ler – nestes tempos em que o jornalismo parece, com exceções poucas, nivelado pela mediocridade – uma entrevista de Nana Caymmi e de Maria Bethânia dei-me conta de que tive, também, o privilégio de conhecer alguns monstros sagrados. Elas são dois deles. Pois monstros sagrados, desde tempos imemoriais,  são guardiões de tesouros. Onde houver um tesouro – em especial o sonhado sonho da imortalidade – lá estará um monstro a guardá-lo. Eles são o sinal do sagrado. Logo, onde estive r o monstro, lá estará também o tesouro. Por isso, são raros os lugares sagrados que não tenham um monstro à sua guarda: um dragão, um tigre, uma serpente.

Bethânia e Nana são monstros sagrados desse tesouro da música popular brasileira. Poder tê-las visto e ouvido, em separado, em São Paulo e no Rio, faz parte do memorável de minha vida, aquilo que permanece na memória. Nana, com sua voz de sonoridade ímpar, relaxada e embriagando-se no palco, gargalhando e dizendo palavrões que soam como orações profanas, isso é algo que beira o sublime. E Bethânia – a feia e estranha Maria Bethânia – transformando-se, no palco, em mulher de beleza magnética, a leveza dos passos, a força paradoxalmente suave da voz…  Quando, pela primeira vez, a ouvi cantando “Carcará” – no início do golpe militar –  falei à minha então jovem mulher: “Essa música e essa moça Bethânia darão força para a resistência à ditadura.” A voz de Bethânia –  “carcará, pega, mata e come” – foi, em meu entender, o primeiro grande hino da resistência.

Com sabedoria sutil – como se esquivando dos brutos – Bethânia desabafa: “Sagrado e profano? Público e privado? Isso já acabou há muito tempo. As pessoas escrevem o que querem e estão cada vez mais ignorantes.”  Ela tem toda razão. E, por isso, há raríssimos monstros sagrados como ela e Nana. Pois são raros também os tesouros a guardar. Mas Nana e Bethânia – ainda encantadas – continuam inspirando-nos a entender que, para se chegar ao tesouro, é preciso matar o monstro. E, hoje, esse monstro está dentro de nós mesmos. Cada um, pois, é o tesouro e monstro de si mesmo. Bom dia.

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