Doutor Corrêa e médico de família

pictureA morte do dr.João José Corrêa, aos 98 anos, não pode ser vista e sentida como uma perda. Ele não morreu. Ficou plantado na vida de Piracicaba como os velhos carvalhos que se eternizam. Ou como raiz eterna que, em cada estação, dá frutos e flores. Na mitologia de Guimarães Rosa, João José Corrêa ficou encantado.

Ora, cada vez mais me convenço de o homem, realmente, fazer seu retorno. E, também, as sociedades e as civilizações. Retorna-se ao princípio, um ir e vir que parece realmente eterno. A imagem que me fica é a de passarinhos em seus primeiros passeios: saem dos ninhos, voam, retornam. Em seguida, voam mais alto e para mais longe. Mas sempre buscam o ninho. Viver deve ser esse ir e vir, desde que se tenha para onde retornar. E ficar. As próprias cidades, quê são elas senão isso?

A imprensa já detectou o ressurgimento do “médico da família”, retorno que alguns dizem resultar de preocupações especialmente de ordem prática e econômica. É toda a área da saúde – enfermeiros, atendentes e outros – que se volta à família, quer no atendimento, quer na prevenção. Mas não acredito seja apenas por questões objetivas, práticas. O “médico da família” – mais do que um profissional, mais do que médico – era o portador do sagrado. Como o farmacêutico. E as curiosas e as parteiras. O dr.Corrêa era tudo isso. E seu exemplo e sua alma permaneceram

Eram tempos, no entanto, em que a vida humana não se banalizara, ainda não profanada por vulgaridades e desrespeitos. Hoje, minhas mais íntimas convicções me dizem do acerto milenar dos grandes pensadores da humanidade, de exaltação à vida, de deslumbramento diante do mundo. Bastou – a quase todos eles – a percepção do ciclo do mundo para, contemplando a natureza, começar a entender a profundidade do mistério do homem. A própria alternância de dia e de noite revela a alternância de gerações, de idas e vindas, de partidas e de retorno.

Não somos apenas a besta-fera. Temos a vocação para o divino. E não há divino sem comunhão. O estranho, parece-me, é ainda não nos termos dado conta de que, destinados a viver em comunidade, temos sido chamados à comunhão: comungar dos mesmos sonhos, comungar das mesmas esperanças, a comum-unidade, a comum-união. Céus e infernos nascem de nossas escolhas, estão aqui mesmo, entre nós. Dependem da solidariedade ou do individualismo. Comunidades individualistas são o inferno uns dos outros: “o inferno são os outros”, da peça sartreana. E comunidades solidárias podem ser pedacinhos dos céus, “o paraíso são os outros”.

O ressurgimento do “médico da família” é, sinto-o, sinal visível, palpável de um retorno ao que quase ninguém sabe dizer para onde, mas que está no coração humano. É como se – ainda que o homem perca a memória – a humanidade não a perdesse nunca, preservando-a numa das catacumbas da alma. Vínculos estreitos com os sábios, curandeiros, pajés, sacerdotes são milenares aprendizados da comunidade humana.

Penso tratar-se até mesmo de uma esquecida pedagogia da solidariedade. Digo-o por minhas lembranças. Pois – entre as tantas imagens, pessoas e recordações – há algumas que ainda aquecem o coração. Se, na infância, vi anjos da guarda e os invoquei, esses anjos eram João José Corrêa, nosso médico da família, como que vindo dos céus nos momentos de doença, de dor e de luto; João Xavier, conselheiro e velho amigo de meus pais; Leandro Guerrini com sua espiritualidade transbordante. Quando eles ultrapassavam a soleira da porta, era como se a esperança retornasse. Pois, com eles, apenas o bom e o bem poderiam acontecer.

O retorno dos médicos da família é um bem, penso eu, que ultrapassa a ordem prática, na pedagogia da solidariedade que os envolve. Eles podem, talvez, trazer, às nossas crianças, a certeza – que minha geração teve na meninice – de que adultos trazem respostas, não problemas. A vida de João José Corrêa é esse testemunho. Seu sacerdócio médico é, portanto, exemplo eterno. Bom dia.

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