Um lugar no mundo

Então, o desejo se me tornou difícil de conter. Era como necessidade vital de ar, pulmões fechados, a sensação de agonia. O valor da liberdade apenas o conhece quem, algum dia, a perdeu. Lembro-me, ainda penosamente, dos tempos da ditadura, a prisão domiciliar, a certeza de estar prisioneiro de meu próprio paraíso. Saber estar tolhido no direito de ir e vir, de conhecer os limites de meus espaços, essa privação de liberdade marca alguém pelo resto da vida. Qualquer grade é uma prisão. Qualquer porta fechada é um cativeiro. E a presença de pessoas nem sempre desejada sufoca.

Acabei não resistindo, pois, se ficasse, enlouqueceria. Então – por tolo pareça contar – escapei de casa, de meu canto, de meu mosteiro e lá me fui enfurnar-me em um boteco. É um lugar onde há, apenas, quatro mesas. Mesinhas, dessas de fábricas de cerveja. E os petiscos – que o velho botequineiro serve – são os mesmos, os de 40 anos passados, da minha mocidade. Os aristocráticos podem não entender, mas há cantos que se tornam recantos.

Acredito no ritualismo da vida. Basta ver a caminhada do mundo em direção às estações de cada ano: tempo de flores, de frutos, de frio, de calor. Ou a caminhada da Terra ao longo do dia: amanhecer, sol a pino, entardecer, anoitecer e, enfim, noite. Não é inútil ou supersticiosamente que se celebram datas, que se criam rituais, quase todos universais. O ano também acaba para um outro começar. A vida nasce da morte. Por isso, é preciso refletir, pensar, pesar, rever-se. Há, sim, o eterno retorno.

Disse-o, de coração aberto, à minha gente querida: não posso dar-me o direito de fingimentos, de farsas, de máscaras, de simulações e dissimulações. Ora, estou entre os que se vão, os que já se estão indo. E resisto em ir. Resisto, especialmente, em ir-me.. Mas eles – os meus queridos – acho que não entendem. E confesso não mais ter tempo, paciência, motivo ou consolo para lhes dar como alimento de enganos. Minha vida vai passando, eis a realidade. E o que me sobra é uma finitude infinita, cada minuto como o começo e fim, alfa e ômega – entenda-o quem puder. Ou quiser. Ou quem não tiver o medo de entender. E aceitar.

Àquele boteco, quando cheguei, o meu velho amigo não me fez qualquer pergunta. Saudou-me como se fosse há 20, 30, 40 anos. Naquele lugar, há apenas o que engolir: fatias de mortadela, de queijo mineiro indefinido, porções de azeitonas verdes, pois as pretas e negras, as azeitonas, são luxo demais.

É o templo de meu amigo.. Era o meu canto, o esconderijo, a fuga, o lugarzinho onde ficava escrevendo, escrevendo, a certeza de estar só. E, também, o espaço de minha indignação. Aquela mesinha isolada tinha sido, para mim, o último lugar solitário do mundo.

E lá fiquei, o meu encontro do lugar nenhum. E do vazio. E, apenas, de mim mesmo. Revi a simplicidade da vida. Eu já a conhecia. E o homem antigo se emociona ao constatar que, realmente, o retorno é eterno. Naquela hora, eu quis retomar o caminho da volta, da minha volta, pois são tempos, agora, em que quase todos apenas querem ir. E, naquele cantinho do passado, eu precisava confirmar os propósitos que fiz há poucos, pouquíssimos anos, rabiscando em folhas de papel: “Ir em busca do sagrado em meio ao profano; lutar para conseguir, ao mesmo tempo, ser bom e justo; aceitar o Desejo com a coragem de ser, com a vontade de ser e com a humildade de ser.” Enfim, ser eu mesmo, vivendo de minhas próprias dúvidas e não de certezas alheias. Tentar é preciso. Bom dia.

Deixe uma resposta