Enfim, o fim

Este texto foi publicado em 05 de maio de 1983, em O Diário, e depois selecionado para o livro “Bom Dia – Crônicas do Autoexílio e da Prisão”.

Agora, tenho pressa, muita pressa. Sei faltar pouco, muito pouco e que, dentro em breve, nunca mais voltarei a este cantinho que foi meu, apenas meu, inteiramente meu. Então, vem-me a vontade de dizer tudo, a certeza de que, em tantos anos, não consegui escrever sequer uma palavra das muitas que desejei. E que não conjuguei um só verbo dos tantos que desejo conjugar.

Ah! o tempo que perdi, deixando de dizer, de escrever, de falar, de conversar, de dialogar, simplesmente por ter acreditado que sempre haveria tempo. E não há mais tempo. Vai-se esgotando, vai-se findando, está próxima a última palavra, chego ao ponto final. E como errei, quanto errei! Pois não era para ter perdido tempo em lutas e guerras estéreis, não era para ter aceitado a armadura de guerreiro, a espada, o fuzil. Não era nada disso. Foi loucura, utopia ou estupidez. Em vez de gritar, o certo teria sido calar-me, pois os gritos ecoaram em desertos. Em vez de guerrear, o certo teria sido manter-me passivo, pois quase todo um povo preferiu a paz dos pântanos.

Fui um tolo, um grande tolo. Como não dei preferência às maravilhas do mundo e da vida, em vez de enfrentar as misérias? Um sorriso, uma pessoa, uma lágrima, um gesto, uma flor, o poente, o amanhecer, uma estrela, o pipoqueiro, a velhinha, o mendigo, a criança, o brinquedo, o cãozinho, a refeição, o violão, os namorados, o enfermo – como pude vê-los tão secundariamente? Essas tantas maravilhas, era preciso que eu as colhesse todas para mim, que as vivesse avidamente, pouco me importando não houvesse muitos que as quisessem e as valorizassem. Errei. Eram tantas as minhas pérolas, tantas eram, que não acreditei pudessem se acabar, pois eu queria compartilhá-las com todos. Pretensioso, quis oferecê-las também aos porcos. Nem sequer me lembrei das palavras evangélicas, ensinando ser inútil dar pérolas aos porcos. Apenas quis dá-las.

E nem mesmo me contentei em ser jardineiro de meu próprio jardim. Quis – pobre de mim! — ser jardineiro do paraíso perdido. E tomei da foice e fui cortando ervas daninhas, e dando golpes, e enfrentando parasitas, e ceifando o joio nascido ao lado do trigo. Pretensioso, quis ser jardineiro de todos os jardins, quis que o meu fosse jardim de todos. Não percebi ser impossível. Foi o maior dos meus erros. O único que eu tinha a fazer era, apenas, cuidar do meu jardim, deixá-lo florido e pacífico, sereno e harmonioso, tranquilo e repousante. E deixá-lo, então, aberto, exposto, à disposição de quem quisesse, nele, descansar.

Fui tolo, repito e repito-me. Esqueci-me de haver quem não goste de jardins. Nem do belo, nem do bom, nem da paz. Pensei, porém, fosse meu dever tentar mostrar-lhes as belezas de flores e plantas espirituais. Tentei, errei. Quase, também, perdi as minhas pérolas, querendo dá-las a tantos porcos. Não vi que havia mais porcos do que pérolas. E eu quase as perdi. E juro que eram muitas, tantas quanto não se pode sequer imaginar. Agora – quando sei ser pouco o tempo que me resta – tenho pressa, muita pressa. Pressa de mostrar as pérolas que me sobraram, pressa de escancarar o meu jardim a quem goste de belezas. Mas não há mais tempo.

Perdi tempo. Restam-me as pérolas, o jardim. Lá me vou, novamente, com o meu pangaré, com meu raio de luar. Aprendi a lição. Haverei de mostrar minhas pérolas num outro tempo, num outro lugar. Enfim, o fim. Bom dia.

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