Eros e Tanatos

Esse texto foi publicado em agosto de 1988 no semanário impresso A Província. Recuperamos para lembrar os 30 anos de atuação em Piracicaba.

Volto a escrever, por aí, sobre o meu fascínio pela crueldade. Os que me conhecem sabem da minha absoluta incapacidade de ferir ou matar sequer um pequenino inseto. Carrego comigo  dor e a culpa de, quando tinha seis anos de idade, haver matado um passarinho. Eu estava com um estilingue na mão, nem sequer sabia usá-lo, então o passarinho surgiu no chão do quintal.

Não sei dizer, até hoje o que aconteceu no meu coração de criança, sei apenas que, como hipnotizado, coloquei a pedra no estilingue, olhei fixamente, atirei e alvejei. Foi terrível. A pedra atingiu o peito do passarinho e ele caiu, mexendo-se no chão.

E foi terrível porque, num primeiro momento, a minha reação foi de júbilo, de alegria, de vitória. Senti prazer naquela violência. E logo em seguida me horrorizei do que tinha feito, correndo para tentar ajudá-lo. Aos seis anos, eu descobri que tinha capacidade para matar.

E aquilo me perturbou, culpa e remorso me acompanhar por muito tempo, até recentemente. E naqueles mesmos tempos, descobri o amor e amei, uma criança maravilhada com sua sexualidade. E me disseram que aquilo era feio. Eros e Tanatos me eram revelados ao mesmo tempo.

E as pessoas diziam que tanto Eros quanto Tanatos eram ruins. Acabei ficando com Eros, e era a vida em mim e em uma mulher, sem que passarinhos precisassem morrer por minha causa. E passei a amar a vida, homem de paixões. Mas em todas as paixões, Tanatos surgia, tirando-me o prazer da vida para anunciar a morte.

Tanatos queria me dizer que ele existia, e eu não queria ouvir. Mas a verdade é que tinha a mesma capacidade de amar e odiar. Eu poderia amar, com contrato, nunca sem contrato. E poderia odiar nas guerras, nunca na paz.

Hoje sou incapaz de matar uma formiga, mas sei que posso fazê-lo. E aceito isso, com naturalidade. Estou vivendo meu exercício de crueldade, buscando viver com ela harmoniosa e serenamente. Tenho tudo dentro de mim. E, portanto, sou capaz de tudo.

A aceitação disso me faz sentir-me mais humano. É possível ser pessoa, desde que nos aceitemos como pessoas. Então, não haverá ruim ou bom, o certo e o errado convivendo, como Lua convivem, partes do todo. Isso é bom.

E por isso estou exercitando a fantástica experiência da traição. Não a traição mesquinha, com o sentido de enganar. Mas a traição do rompimento. Estou rompendo-me, indo ao encontro do que não acreditei. O leque se abre e há, como eu intuía, beleza em todas as partes. Estou vivendo a traição para comigo mesmo. E descubro, do outro lado, coisas mais belas.

Há muitos lados, e todos são apenas lados. E não há apenas uma verdade, há muitas verdades. A partir daí, compreendi melhor Jesus Cristo: o que é a Verdade? Ele não disse qual era, talvez porque, sendo tantas, cabe a cada ser humano descobrir, entre tantas, a sua. Bom dia.

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