Professor de sonhos
Viver vive-se vivendo (8)
Cientistas advertem o mundo para uma situação alarmante: as neves do Kilimandjaro estão derretendo. Dentro de vinte anos, não mais existirão. As futuras gerações apenas saberão daquela beleza porque houve contadores de histórias registrando- a, pinturas, fotografias.
Essas minhas emoções proustianas,caipiramente proustianas, têm esse único sentido: contar o que aconteceu, o que houve, como as coisas eram, como se vivia, antes que os novos tempos atropelem tudo de uma vez. Nada há de mim, a não ser impressões. Vejo-me como observador que viu, alguém que participou e que precisa contar. Como se fosse um registro. Nossos netos têm o direito de saber como era o mundo em que vivemos. E a cidade onde nossa vida aconteceu.
Sou dominado pela figura terna do Joãozinho Feliciano, meu primeiro professor de sonhos. Nesse meu tempo de quase ir-me, espanto-me de saber que ele mora pertinho de minha casa, que posso vê-lo, em alguns entardeceres, a carapinha branca, tomando cerveja à porta de um bar. E, então, quanto mais vejo o tempo escoar-se, mais sinto que meu olhar para o mundo surgiu do olhar de Joãozinho, esse que se tornou um ser humano maravilhoso, o negro sempre sorridente com generosidade dos santos. Joãozinho sabia mexer na terra, cutucar o quintal em busca de minhoca, colocar gosma de jaca para, em pedacinhos de pau, aprisionar passarinhos.
Eu via Joãozinho prender os passarinhos e, depois, soltá-los. Aprendi, com ele, a fazer estilingue, minha primeira e última arma, a única. A infância dos anos 1940 não se “armava” para combates estelares, para lutas nos espaços siderais. As nossas eram armas como que de sobrevivência, primitivas como as dos homens das cavernas: estilingue, bodoque, revólver de madeira. Joãozinho me ensinou a fazer estilingue e, depois de pronto, eu não sabia qual a utilidade dele. Usei-o para matar um passarinho que não me sai da lembrança, dor que se não afasta. E, naquele tarde, chamei por Joãozinho, ele não estava. O passarinho estrebuchou, morreu, sepultei-o e tive uma certeza: se Joãozinho Feliciano – filho da cozinheira de minha mãe, que cuidava de mim – estivesse a meu lado, o passarinho não teria morrido. Só voltei a matar muitos anos depois, pescando num riacho da Usina Ester. Era um lambari prateado. Acho que nem o matei. Pois o devolvi à água.
O meu universo da imaginação foi alimentado também por Joãozinho Feliciano. Ainda recentemente, num desses encontros rápidos onde ele vai bebericar sua cervejinha e onde vou ouvi-lo contar histórias de nossas vidas, ele me falou da aventura que era levar-me ao cinema. Ele precisava mentir para eu entrar. Era no Cine São José, esse monumento de nossa história piracicabana que, ainda, se busca preservar. Era ao “pulero” – ou “pulguero” – que Joãozinho me levava. E íamos ver seriados e filmes de bangue-bangue, musicais, filmes de horror. Os grandes heróis desfilavam pelas telas do São José, o “Zelão”. E, depois, foram meu pai e minhas irmãs que me levavam, até eu viciar-me de tal forma em cinema que passei a ir sozinho, pedindo garrafas e tampinhas nas ruas para vendê-las no armazém de seu Jorge Maluf, na Rua São José.
Ir ao Teatro Santo Estêvão era uma outra festa. Já estava decadente. Na parte superior, a Biblioteca onde, como se fossem majestades intocáveis, reinavam Leandro Guerrini e Mário Orsi. Como era bom freqüentar a biblioteca! Em que mundo de sonhos se mergulhava! Mário Orsi orientava as leituras, Leandro Guerrini – pelo menos em meu caso, pois ele era amigo da família – dava-me, escondidamente, livros que os padres salesianos proibiam de ler. Havia, sim, o “index” de leituras para os adolescentes. O “Crime do Padre Amaro”, de Eça de Queiroz, era um dos livros proibidos. Eu o li, pela primeira vez, graças à generosa iconoclastia de Leandro Guerrini.
As últimas coisas que aconteceram no Teatro Santo Estevão foram alguns programas de auditório da antiga PRD-6, lutas-livres e carnavais populares, libidinosos, a chamada “Boca do Diabo”. A partir dos meus seis anos de idade, a vida me soltou da proteção de Joãozinho Feliciano. Se ele tivesse permanecido a meu lado, talvez as quedas tivessem sido menos dolorosas. (Ilustração: Araken Martins)