Escola de sereias

Esther-WilliamsAtrevi-me a viver uma aventura que, agora, percebo ser perigosa, ainda que instigante. Decidi tentar rever, redescobrir, recuperar, reviver e contar todos os mundos que vivi, todos as épocas, especialmente as que morreram ou estão, apenas, encobertas. São descobertas e redescobertas que, por incrível pareça, fascinam. E o perigo está nisso: mergulhar naqueles mundos e naquelas épocas e não mais conseguir sair deles.

Descubro, cada vez mais, que minha geração foi a de pessoas felizes. E isso apenas confirma aquilo em que pensadores acreditam: “Uma criança feliz se tornará um homem feliz.” Tento interpretar, entender, analisar, mas esbarro numa intuição que se me vai tornando certeza: minha geração pertenceu a um mundo e a uma época de sonhos. E foram muitos. Sonhos de liberdade, de rompimento de tabus, de beleza, sonhos de reconstrução do mundo, da vitória do idealismo sobre a estupidez materialista. Quando John Lennon fez o amargo desabafo – “o sonho acabou” – era, apenas, uma parte da verdade. O materialismo estava vencendo, mas não era uma vitória final. E ainda não é.

Dou-me conta – com o anúncio da morte de Esther Williams – que um dos pilares daqueles sonhos, pelo menos para mim, foi ela mesma, Esther, e o filme “Escola de Sereias”. Era uma produção quase simplória, mas encantadora. E Esther Williams – nadadora olímpica – se impunha por uma beleza singularíssima, entre ingênua e escultural. O sorriso dela, os trejeitos, o corpo perfeito, o rosto lindo, uma pessoa ao mesmo tempo quase banal e diferenciada. Ela não tinha o que, à época, se chama “sex appeal”, mas encantava.

Tudo aquilo era artificial, produzido, elaborado e – no entanto ou por isso mesmo –  um sonho reconfortante. Crianças e jovens de agora irão rir-se e debochar diante, por exemplo, do filme “Escola de sereias” e, também, da quase simplória Esther Williams. Mergulhados no pesadelo da violência e do individualismo, não saberiam deslumbrar-se com aquelas delicadezas, com a ingenuidade e com a doçura de tudo aquilo.

Ora, eu não sabia que Ester Williams ainda estava viva. Soube disso agora que ela morreu, aos 91 anos. É, para mim, mais uma confusão mental e espiritual nestes mundos em que venho mergulhando. Pensando que ela tinha morrido há muito tempo, Ester permanecia viva em minhas lembranças. Agora que morreu, sei que ainda vive.  Pois nunca – mesmo chegando quase ao fim da jornada – me esqueci dela e de “Escola de sereias”. Ainda hoje, recordo-me da música delicada, também ingênua: “Bonequinha linda, de cabelos de ouro, olhos tentadores, lábios de rubi…”

É uma experiência incrível, tensa, quase angustiada essa a que me propus. Mas plenificante. Sei que estou aqui, agora, nesta época, neste novo e conturbado mundo. No entanto, estou, também, em todos os outros que os antecederam. Parece que nada é passado, mas que tudo se fez presente, sem qualquer preocupação com futuro. Cada vez mais, sei ser, eu,  a soma de todos os meus ontens. E que isso me permite viver e compreender o agora. Recolher minuto por minuto, hora por hora, dia por dia de toda essa história é pretensão quase estúpida. Mas nada posso fazer, se estou dominado por ela. Ao saber que Ester Williams morreu fui pego de surpresa. Pois eu a tinha como morta, fisicamente, há muito tempo. E ela continuava viva como pessoa mas, especialmente, como história.

É complicado, complicadíssimo. Mas ir em frente é preciso. Afinal de contas, o mundo ainda sonha com uma escola de sereias. E, de tanto sonhar, pode recuperar o próprio sonho. Bom dia.

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