Estranhando o ir e vir

O texto foi publicado no dia 8 de abril de 1982 em O Diario e depois selecionando para o livro Bom Dia – Crônicas de Autoexílio e Prisão, lançado em 2014

Ora, o mistério da alma humana, a infinita vocação do homem para a liberdade! Esse destino foi e sempre será o grande responsável pela queda das tiranias e das ditaduras, dos tiranos e dos feitores das províncias. O homem – e, portanto, a humanidade – tem o chamado irresistível da liberdade. Vejo-o por mim e, então, perturbo-me ainda mais diante do mistério da alma humana.

Durante 29 dias, vivi o martírio de estar preso dentro de minha própria casa (NA: outras condenações aumentaram a pena do cronista). A simples constatação de estar impedido de ir e vir, a certeza de estar confinado, tornou-me insuportável ficar em casa, algo sufocante, asfixiante. E, no entanto, sempre fui um homem que se deliciou em estar recolhido na paz do lar, entre os meus e com os meus. Enriqueço-me quando, na madrugada e eles dormindo, recolho-me à biblioteca e fico comigo mesmo, escrevendo, lendo, estudando, ouvindo música de meus compositores favoritos. São os meus mais íntimos e enriquecedores momentos, como se – ausente de todos e da máquina que brutaliza – mais do que encontrar-me, conseguisse não fugir de mim, não permitir que escape de quem sou.

Pois bem. Naqueles 29 dias tudo foi torturante, sufocante, um martírio. Até o silêncio machucou. E mesmo nas madrugadas que me fascinam, quase todas elas foram-me angustiantes. No mesmo ambiente que me pacifica e no qual me enriqueço interiormente, lutei para não me deixar destruir. Não havia concentração para a leitura, para qualquer estudo, apesar de todo o tempo à minha disposição. Restava-me, apenas, sentar-me à frente da máquina datilográfica e escrever, compulsiva e freneticamente, escrever. Escrever até mesmo de forma irracional e ilógica, mas, escrever, passando para o papel tudo o que me vinha à cabeça, na confusão de ideias e sentimentos. E depois rasgar tudo, quando o cansaço chegava e o amanhecer se punha próximo.

Contei os dias, à espera de poder sair, irritando-me com os que – à guisa de consolar-me -, tentavam mostrar-me que, pelo menos, eu estava em casa e com a presença dos meus. Mas era estranho: eu estava apenas fisicamente em minha casa, o pensamento ausente. Eu queria, apenas, sair, ir e vir por minha vontade. Passaram-se os 29 dias e, então, saí. E, imediatamente, senti os reflexos de meu confinamento. As pessoas – movendo-se apressadas, aglomeradas – de tal forma me atordoaram que tive a sensação de desmaio. A sensação talvez de quem sai do escuro e a luz lhe bate nos olhos. Estranhei. Mas insisti. Não consegui, porém, trabalhar. E rapidamente voltei para a casa da qual eu tanto queria sair.

E nela fiquei, sentindo-me aconchegado, retornando ao meu cantinho, aos meus livros, à minha música, como se fosse um lugar do qual estivesse ausente por muito tempo. E fiquei tranquilo, pacificado. No mesmo lugar que, durante 29 dias, me pareceu impossível de suportar um exílio, uma prisão. Bastou-me saber que, agora, readquiri a liberdade de ir e vir – e, portanto, de também ficar – para que minha prisão se tornasse novamente um lar, reconfortante e enriquecedor. Assusto-me com o mistério indecifrável da alma humana. Bom dia.

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