E o pagaré, onde está?

O texto foi publicado no dia 18 de abril de 1982 em O Diario e depois selecionando para o livro Bom Dia – Crônicas de Autoexílio e Prisão, lançado em 2014

Meu pangaré, onde está meu pangaré? Esqueci-me dele, pobrezinho, que deve estar esperando-me à beira de algum regato da vida, ou à sombra de alguma árvore do mundo. Manso, pacífico, aguardando-me para, juntos, cavalgarmos por caminhos de paz, levando-me a lugares onde bebi da água que revigora a alma e onde comi de frutos que ativam as forças do espírito.

Durante 29 dias, vivi o martírio de estar preso dentro de minha própria casa. (NA: outras condenações aumentaram a pena do cronista). A simples constatação de estar impedido de ir e vir, a certeza de estar confinado, tornou-me insuportável ficar em casa, algo sufocante, asfixiante. E, no entanto, sempre fui um homem que se deliciou em estar recolhido na paz do lar, entre os meus e com os meus. Esqueço-me quando – de madrugada e eles dormindo – recolho-me à biblioteca e fico comigo mesmo, escrevendo, lendo, estudando, ouvindo música de meus compositores favoritos. São os meus mais íntimos e enriquecedores momentos, como se – ausente de todos e da máquina que brutaliza – mais do que encontrar-me a mim mesmo, conseguisse não fugir de mim, não permitir-me escapar de quem sou.

Admito agora que, montado no meu pangaré, fui, na maioria das vezes, um fugitivo. Sem o perceber, afastei-me para não ver e não ouvir, para não presenciar e não participar. Busquei o repouso impossível de ser encontrado, pois não há repouso solitário. E a paz nada mais é do que o fruto de um encontro.

Foi bom, sim, sair pela vida montado em meu pangaré. Vi lírios nos campos e estrelas nos céus. Enxerguei rostos de anjos sob a pintura a pintura desbotada nos rostos das prostitutas. Vi homens milionários de riquezas interiores vestindo andrajos, e miseráveis espirituais vestidos de ternos e gravatas. Foi bom e, talvez, até necessário e oportuno, ter montado em meu pangaré, sair pela vida, caminhar pelo mundo. Agora não. Agora é preciso ficar e não sair, estar e não ausentar-me, permanecer e não desistir. Ninguém encontrará a paz se ela não for para todos. Ninguém feliz solitariamente, pois a felicidade tem possibilidade de estar no encontro com as pessoas, na soma delas, na fusão de almas com todas as aspirações, angústias, anseios.

A paz não é um dom gratuito, mas uma conquista. Quase sempre, é preciso guerrear para obtê-la. Parece-me, até, enxergar melhor agora: a paz chega com o cansaço que sobra ao fim de cada batalha justa. Meu pangaré, meu pangaré… Pobrezinho, ainda há de esperar-me muito e muito, até que eu possa montá-lo e voltar a sair por aí. Vitorioso ou derrotado. Bom dia.

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