A tirania da coerência
Esse texto foi publicado em outubro de 1988 no semanário impresso A Província. Recuperamos para marcar os 30 anos de atuação em Piracicaba.
Minha mulher costuma queixar-se de que não conhece mais o homem com quem se casou. Ela está certa. Afinal de contas, aquele homem tinha 22 anos e hoje está com 48. E os meus filhos dizem que não conhecem mais o pai de quando eram crianças. Não posso mais carregá-los no colo, nem dar-lhes a mão para que atravessem as ruas.
Bem que eu gostaria de continuar fazendo isso – mas não posso, nem devo. Meus amigos mais íntimos me dizem que não sou mais o homem que dirigiu O Diário, que lutou mais de 20 anos contra uma ditadura militar. E não sou mesmo, mesmo porque a ditadura acabou e eu não sou louco.
Pois é louco o que luta contra o que não existe. O fato é que, felizmente, eu não sou mais o mesmo homem, nem penso mais as mesmas coisas. Aliás, não me lembro nem mais o que pensava ontem. Há coisas que ficam, que são. E há outras que não precisam ficar, que são apenas naquele momento.
Suponhamos a Primavera. Ela é sempre a mesma, cada vez que chega. Mas as flores de cada Primavera são as flores de uma Primavera, não a Primavera. Suponhamos o Dia e a Noite, que se repetem, que se repetem e se alternam.
Tudo o que existe na vida e no mundo são mutações. Tolo, pois, o homem que se orgulha de nunca mudar. E no entanto estamos nos orgulhando em construir uma geração de tolos, os que nunca mudam, os que são sempre os mesmos.
Nem a pedra de ontem é a mesma hoje. Por que então essa cobrança para que sejamos imutáveis, coerentes? Penso eu que a coerência é o que há de mais cruel em forma de escravidão. Em nome da coerência, exige-se que a pessoa exerça um papel e não saia dele.
A obrigação da coerência é a arma que as pessoas inseguras inventaram por causa do medo que elas têm das transformações. A mulher é a maior vítima da tirania da coerência. Casando-se, tem de se resumir ao papel de mãe e esposa, renunciando-se como pessoa. E o próprio homem – que tem mais liberdade e direitos, nessa sociedade machista – se vê obrigado a desempenhar funções.
A isso, dá-se o nome de civilização. Ora, eu já acreditei em tudo isso. Mas o ser humano é a maravilha do caos. Logo, resolvi assumir a mim mesmo e viver o fascínio desse caos. Mas, como não sou louco nem um indigente intelectual, sei que há um mundo exterior a ser convivido, e o meu mundo interior.
Então, resolvi conciliar os dois. É óbvio que eu mudei, que continuo em transformação – será que isso é assim tão terrível? E mudei porque fiz uma opção, porque vou em busca do meu sonho: quero escrever. E apenas isso.
E para escrever, tenho apenas a experiência de tentar ser aquilo que sou, não aquilo que desejam que eu seja. E minha mulher, meus filhos, meus amigos, se preocupam com o fato de eu não ser mais o mesmo. É como se mudança fosse uma doença, mas doença é estagnação.
Ora, estou precisando ouvir o que plantas, animais e pedras têm a me dizer. E o vento, a chuva, a terra. O silêncio. A solidão. De pessoas, ouvi quase tudo. E não gostei. Bom dia.