Existir, viver, sobreviver, entender

ExistirNunca entendi — deve ser falha minha — pessoas alegrando-se por se considerarem sobreviventes.Ora, circunstancialmente, sobrevive-se a um acidente, a uma doença, a uma tragédia. Mas sobreviver à própria vida, como se esta fosse um castigo, pena, maldição? É-me mais fácil compreender morte e ressurreição do que sobrevivência.

Tive — num hipermercado, cercado de belezas e delícias — uma experiência inesperada, se de jogo de palavras, se um redespertar filosófico, sei lá. Diante de vinhos e queijos — sinais de escolhas boas diante da vida — encontrei-me com um casal amigo, ambos na beleza de uma maturidade descansada, sem aparentes dificuldades. A surpresa do reencontro, abraços, a inevitável reação: “Há quanto tempo! Como estão vocês?”

E, então, as respostas. A mulher: “Vou sobrevivendo”. O homem: “Vou existindo, vivendo”. E, como se me alcançando das entranhas não sei se da alma, se do coração, senti algo antigo, milenar em tudo aquilo, uma profunda tolice humana que, séculos após séculos, ainda se repete. Ora, não sei onde ficam guardadas as coisas, se a memória está na alma, se no cérebro. Se em ambos. O fato é que, quanto mais me vejo passando através do tempo imóvel, mais se me reacendem lembranças, sensações, aprendizados.

Confesso não saber dizer qual meu professor de juventude e de que filósofo ele nos transmitia o ensinamento, mas ficou-me a marca, ainda que eu mesmo não tenha aprendido a lição. Quase me arrisco a dizer seja de Santo Agostinho, receoso, porém, de estar em Tomaz de Aquino. Ou em ambos, de um para outro? O de que me lembro é a reflexão, acho que agostiniana mesmo, entre existir, viver, entender. E, de certa forma, esse sobreviver que, quase sempre, nada tem a ver com viver.

Quando meu amigo me disse — diante de iguarias finas — que estava “existindo, vivendo”, enquanto sua mulher ia “sobrevivendo”, os bancos escolares pareceram queimar-me a carne. Vi e ouvi o professor ensinando: existir, o que está no mundo existe. Mas nem tudo que existe vive. A pedra existe mas não tem vida, não vive. O cadáver existe mas não vive. E a planta, que existe e vive? Eis aí — dizia-nos gloriosamente o velho mestre — a grande maravilha do ser humano. Que existe, que vive e que, diferentemente de outros seres, entende. A flor e a lesma existem, vivem mas não entendem a existência e suas vidas.

Lembro-me de, naqueles tempos, ter-me perturbado com a lógica cartesiana, o “ergo sum”, o “penso, logo existo”. Passei, eu, a filosofar, a tentar entender coisas. Adolescente, eu me deitava numa rede ao fundo do quintal e, certo dia, fiquei olhando as formiguinhas que passavam, indo e vindo. Acho que delirei. Eu as via, elas não me viam. Eu sabia delas, elas não sabiam de mim. Então, embaralhei tudo: Agostinho, Tomaz de Aquino, Descartes e – eureka! – lá me vi desafiando a lógica cartesiana. Bradei aos ventos: “A formiga não pensa, mas existe.” Portanto, para existir, eu não precisava pensar. Pensar teria que dar-me mais, muito mais do que apenas existir: um entender.

É óbvio, para mim, esteja o eventual leitor pensando em complicações que, com certeza, o escriba possa estar vivendo. Mas é engano. O escrevinhador decidiu, de alguma forma, estirar-se numa rede imaginária e, como na adolescência, ficar olhando não mais formigas, mas pessoas indo e vindo, sem saber para onde vão e não tendo para onde voltar. Isso é o angustiante, esse estar sendo parte de uma era sem princípio e sem objetivo.

Naquele hipermercado — diante de amigos que vão existindo, vivendo por viver, sobrevivendo — retornaram-me algumas convicções que, na realidade, me obrigam a enraíza-las. Existir, pedras e cadáveres existem. Viver, plantas e animais vivem. Lutas de sobrevivência são da ordem natural das coisas, pois a morte é inimiga da vida. No entanto, o ser humano — por existir, por viver, por sobreviver — temos que parar de brincar com a vida. Porque pensa, o homem não apenas existe. Porque pensa, o homem entende. E porque entende não lhe resta outra sabedoria senão a da compaixão.

Um homem e uma mulher, estando juntos há tantos anos, não podem num supermercado dizer que apenas vão vivendo, sobrevivendo, existindo. Isso, parece-me, é desmerecer a humanidade deles mesmos. Quem existe e ainda vive, para merecer a existência e a vida, há que tê-las entendido. A menos que viver seja castigo, inferno no vale de lágrimas.

Se for essa desgraça, para quê, então, manter tal e tanta agonia?

Publicada originalmente no Correio Popular em 17/3/2006

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