Fazedor de horóscopo

HoróscopoAndo numa fase da vida em que, em vez de descrer, acredito em tudo. Incluindo, obviamente, Papai Noel, fadas, bruxas, duendes. Mas, em horóscopo, não acredito. Não consigo e há antecedentes para minha incredulidade. Sou da época do Omar Cardoso, quem se lembra dele? Pois o Omar, estrela da época, enviava suas previsões para os jornais, matéria paga. E eu sou do tempo de jornais pobrezinhos, que nem sequer se consideravam empresas como agora quase todos eles se tornaram. Jornais eram espaços idealísticos onde a juventude se abrigava para aprender com os mais sábios. E uma escola de estilo literário, de escrever bem.

Já contei como se fazia, mas não resisto voltar a narrar, pois as lembranças retornam especialmente agora quando mergulhei, em definitivo, nesse meu livro de memórias que, na verdade, nada mais são do que narrativas de quem viu, acompanhou, participando de tantas e tão profundas transformações. Não há nada autobiográfico, mas a narrativa de um contador das histórias que viu, das tantas décadas marcadas e dos espaços transformados. É tanta coisa que me assusto e entro em aflição, o medo de não ter tempo para contar tudo o que se vai acumulando, retornando, sendo revivido, incluindo o que parecia morto ou esquecido no mais fundo da memória.

Quando me lembro de que oficinas de jornal eram gráficas com letras de chumbo, colocadas uma a uma para formar uma palavra, fico assustado. Caixa de tipos, linotipo, máquina de imprimir jornal apenas de duas em duas páginas, captar notícias por rádio, recortes de jornais – era uma aventura sofrida mas gloriosa. E me recordo de que, jovenzinho ainda, aos meus 21 anos, me transformaram em diretor de jornal, a “Folha de Piracicaba” onde, segundo minha avaliação hoje, se deu a principal revolução jornalística da cidade, anterior ao “Diário”. Pois, na “Folha”, de 1961 em diante, acontecia o encontro dos jovens intelectuais e políticos, as grandes discussões em torno de reformas ideológicas e estruturais, uma certeza absurda mas honesta de ser possível transformar o mundo.

Não tínhamos dinheiro para quase nada. Pagar os heroicos funcionários era um martírio, pois não havia organização administrativa, comercial, numa aventura feita com o coração. Foi quando Omar Cardoso apareceu com a sua coluna de horóscopo. Ele no-la ofereceu dizendo ser baratinho, da mesma forma que o Maurício de Souza, então funcionário da Folha de São Paulo, nos ofereceu a Mônica, o Cascão, enviando-nos clichês já utilizados em outros jornais. Aceitávamos mas, então, quando não havia mais dinheiro para pagar, queríamos interromper as publicações e tanto Omar quanto o Maurício faziam concessões. E, de concessão em concessão, aconteceu que a liberalidade tomou conta de tudo.

O leitor queria horóscopo e não tínhamos dinheiro para pagar uma coluna assinada. Era o tempo em que jornalismo se aprendia na redação, sem qualquer escola ou faculdade. Havia degraus: começava-se como ouvinte de revisor, depois como revisor e, em seguida, a reportagem: primeiro, esportes; depois, polícia. O foca não redigia os textos, apenas levava a informação ao redator. E, quando seu primeiro texto era publicado, era porque, finalmente, ele conseguira subir mais um degrau e podia se considerar repórter, passo inicial para o grande sonho de ser redator. A escadaria era íngreme, difícil de subir.

Pois bem. Decidi, então, que eu mesmo seria o fazedor de horóscopo, sem nada entender dessas coisas. E sem acreditar. Sagitário ou Áries eram, para mim, “la même chose”. Mas o fato é que, a pouco e pouco, o meu horóscopo começou a ser lido e comentado. O vereador Mário Stolf – grande amigo nosso, que não saía da redação – era dependente da leitura de horóscopo. Não saía de casa antes de ler o que as estrelas lhe falavam. E, certa feita, o Mário Stolf começou a apoiar uma campanha de direita que nós combatíamos. Respeitávamos, mas discordávamos. Sei lá que demônios me atacaram, resolvi fazer uma malvadeza para o meu amigo Mário Stolf. Sabendo de sua data de nascimento, comecei a fazer-lhe previsões cada vez mais catastróficas, dia a dia, a semana inteira.

Eram coisas assim: “Cuidado com o que vai lhe acontecer nesse dia, que é aziago. Não faça negócios.” Ou: “Infelicidade no amor. Fique atento que você poderá ser traído.” Se eu sabia que o Mário Stolf – que tinha o único Citroen da cidade – iria viajar, lá preparava o horóscopo dele: “O dia não é propício para viagens, pois os astros estão conjugados para desencadear desastres.”

O fato é que o Mário Stolf começou a ficar quase louco. Entrava na redação com os olhos abatidos, ansioso. E um dia, não aguentando, me pediu para conversarmos a sós. Falou: “Cecílio. Me conte quem é o especialista em horóscopo que eu preciso falar com ele. Minha vida está se transformando numa tragédia. Cada dia, o horóscopo me indica coisa pior. Preciso me aconselhar com esse homem. Será que ele cobra caro para dar um jeito e melhorar um pouco meu horóscopo? “

Mandei-o procurar o Omar Cardoso, pois eu nada poderia fazer. E até morrer – num acidente! – o meu querido amigo Mário Stolf não soube da maldade que lhe fazíamos. Como o Lula diz, “papel aceita tudo.” Bom dia.

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