Feriado ainda esdrúxulo

Era-me absolutamente previsível despertar reações a respeito de minha discordância quanto ao feriado de Zumbi, também chamado da Consciência Negra. Não me é novidade. Acontece desde quando me manifestei pela primeira vez. E, se ainda me manifesto, é porque as causas permanecem as mesmas.

Ora, a quadra onde passei a infância e a adolescência era uma ONU em miniatura: italianos, alemães, japoneses, árabes, negros, judeus. Todos conviviam, coexistíamos. Mas havia ranços de preconceitos e de racismos que pareciam, entre os adultos, insuperáveis. Ao alemão sorveteiro, seo Pink, as crianças gritavam: “Alemão batata come queijo com barata.” E as respostas, nem sempre sutis, voltavam-se às crianças: “turquinho sem vergonha, judeuzinho ladrão, italianinho sujo, japonesinho traidor, pretinho ordinário.” Mas coexistíamos.

Cientistas sociais haviam previsto que a globalização econômica produziria a fragmentação de povos e pessoas. Isso significa o fechamento em si mesmo, em grupos, em tribos, em redes de segurança. Pois ninguém vive no globo, mas na sua cidade, no seu bairro, na sua casa, entre os seus. Basta ver como se fortalecem cada vez mais as seitas, clubes de serviços, lojas maçônicas, ONGs, incluindo grupos que fragmentam a própria internet.

Em vez de inclusão global, estamos diante de exclusões. Há o “nosso grupo” e os “outros grupos”. Serpentes da discórdia geram seus próprios ovos, quase sempre os da intolerância. A já comprometida tese do “politicamente correto” teve poder imobilizante. Pois pensar diferentemente do que foi imposto leva ao risco das agressões verbais, em condenações definitivas, em marginalizações odiosas. Criou-se o paradoxo de a democracia tornar-se como que uma ditadura de minorias, não importa mais quais sejam.

De minha parte, continuo cauteloso quanto a movimentos excludentes, pois o exclusivismo nada tem de democrático. São ondas que, quase sempre, em vez de propor maior integração entre as diferenças, como que estimulam a exclusão.Para mim, desde quando a idéia desse feriado foi lançada, senti-a feito semente de exclusão, sabendo a nativismo. E tudo o que é nativista tem, nos genes, o reducionismo. Um feriado para comemorar a consciência negra justifica o surgimento de outros feriados e comemorações: da consciência indígena, da consciência européia, da consciência asiática. E para subdivisões de etnias e nacionalismos como judeus, árabes, croatas, sérvios – o trágico mapa dos ódios mundiais. Pouco faltará, então, para a abertura de uma nova e terrível “consciência ariana”, que vive em estado germinativo.

Que argumento de justiça ou democrático impedirá que, diante de um feriado “da consciência negra”, não surja um da “consciência branca”, ariana? Ora, os que repudiamos o “eurocentrismo” temos o dever de temer que o mal se repita com outros nomes, seja “afrocentrismo” ou “asiocentrismo”.

Feriados, quando particularizantes, são excludentes. Esse de Zumbi e da consciência negra permite questionamentos sérios como os feriados católicos. Se é da consciência negra, porque os brancos são obrigados a participar dele; se são de origem católica, por que os não-católicos devem ser submetidos a estes? Há algo capenga nisso tudo, especialmente por sabermos que não se celebra e não se comemora aquele que poderia ser um ponto de encontro de todos, por sua dimensão universal: o Dia Nacional de Ação de Graças. Criado pelo presidente Dutra em 1949 e regulamentado em 1965 por Castello Branco, para acontecer na quarta quinta-feira do mês de novembro, esse deveria ser um dia para celebrarmos a consciência humana. E daí?

Ora, já fui tachado de racista e chamado de branquelo por considerar esdrúxulo e excludente esse feriado. O conceito de raça é sério demais para ser banalizado e até vulgarizado. Confesso sentir-me, ainda hoje, confuso diante das linhas mestras das raças humanas: caucasiana, mongólica, negróide. Não sou tolo para perguntar-me à qual delas pertenço. Mas, diante de qualquer aventura racista, eu, descendente de árabes, estaria mais vinculado a mongólicos e negróides, do que a caucasianos. Por descendência, estou entre os filhos de Sem; logo, semita devo ser. Hitler haveria de querer matar-me.

Esse feriado é, para mim, cada vez mais estranho. Esse texto, escrevi-o para o Correio Popular, de Campinas, há alguns anos. E, ainda hoje, acho que a grande esquecida, no feriado, é dona Maria que, segundo o historiador negro Alaôr Eduardo Scisínio, era a “mulher branca de Zumbi, filha de um senhor de Ponto Calvo”. Modismos são complicados e podem ser comprometedores. Bom dia.

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